Vértebras

A César o que é de Cesar: a Procuradoria-Geral da República e os abusos da Igreja

Vértebras

por Pedro Almeida Vieira // Fevereiro 17, 2022


Categoria: Opinião

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No passado dia 15 de Janeiro, o pedopsiquiatra Pedro Strecht, nomeado pela Igreja Católica para presidir à Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica (perdoem-me a redundância, mas serve para melhor salientar que o potencial criminoso escolhe a dedo uma comissão para avaliar os seus eventuais crimes, autodenominando-a de independente), anunciou que “validou, em menos de uma semana, 102 testemunhos”, que, segundo o dito, contêm “momentos de profunda dor e sofrimento”.

E adiantou ainda que a dita Comissão – de que fazem parte Laborinho Lúcio (juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça e antigo ministro da Justiça), Ana Nunes de Almeida (investigadora do Instituto de Ciências Sociais), Daniel Sampaio (psiquiatra e professor catedrático jubilado da Faculdade de Medicina de Lisboa), Filipa Tavares (assistente social e terapeuta familiar) e Catarina Vasconcelos (cineasta) – tinha já “situações agendadas para contacto pessoal”.

man sitting on chair holding and surrounded by people

Não colocando em causa a idoneidade destas personalidades, convém, contudo, relembrar que, desde Abril de 2019, Pedro Strecht é “membro convidado do Patriarcado de Lisboa na equipa de prevenção de abusos sexuais na Igreja”. O termo “comissão independente” surge-me aqui de utilização demasiado lata. Ou com lata.

Esta semana foi também anunciada, pela Igreja Católica (claro!), a nomeação do ex-procurador-geral da República José Souto Moura para presidir à Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas de Proteção de Menores. Segundo um comunicado da Conferência Episcopal Portuguesa, a dita Comissão “tem o objetivo de assessorar o trabalho de cada comissão diocesana, propor procedimentos e orientações comuns, ajudar em tudo o que possa proteger as vítimas e esclarecer sobre quadros normativos canónicos e civis relacionados com os processos de abuso sobre menores, tanto no que respeita ao acompanhamento da vítima como na atenção ao agressor”.

Recorde-se também que José Souto de Moura – além de não ser recordado propriamente como um procurador-geral inflexível no seu mandato de seis anos (2000-2006) – foi, tal como Pedro Strecht, convidado pelo Patriarcado de Lisboa há três anos para integrar a equipa de prevenção de abusos sexuais na Igreja. E nessa altura, quando se jubilou, Souto de Moura anunciou que iria manter as suas ligações com “a revista Brotéria, dos jesuítas, com a Associação de Juristas Católicos [uma idiossincrasia portuguesa num Estado e numa Justiça que se quer laica, acrescento eu] e com a Comunidade Vida e Paz”.

Enfim, já Cristo dizia, mas a Igreja Católica parece não aprender: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Ora, sendo Portugal um Estado de Direito – ou, pelo menos, alegando-se que é –, havendo separação de poderes (e desde o século XVIII a Igreja Católica deixou de ser um Estado dentro de outro Estado), não se compreende (ou melhor, compreende-se, mas não se deveria admitir) que tantas e tão doutas pessoas, algumas da Magistratura e outras da área social, disponham da sua imagem, do seu talento e do seu trabalho para contribuírem, nem que seja indirecta e involuntariamente, para uma autêntica operação de lavagem de crimes no interior da Igreja Católica em Portugal.

Note-se: em menos de uma semana, a dita Comissão Independente, com parcos meios investigativos, validou 102 testemunhos, alguns certamente documentados, mas sempre abafados ao longo dos tempos e tempos, tanto mais que as alegadas vítimas têm já idades compreendidas entre os 30 e os 80 anos. Não há inocentes. Quem cria agora estas comissões não está inocente.

sliced of bread beside goblet

Que a Igreja – como entidade humana – tente fazer sempre bem o seu trabalho para se perpetuar, sabendo ultrapassar momentos difíceis, isso sabe-se, porque assim sempre fez: quem conhece alguma História da Igreja sabe bem disso. Agora, que um Estado de Direito laico deixe agora isso suceder, de forma impune, não se pode aceitar. Não se deve aceitar.

Não se deve assim aceitar ver uma Procuradoria-Geral da República a assistir impávida e serena à criação de comissões supostamente independentes e de coordenações também supostamente independentes dentro da própria Igreja Católica – e onde se assume já que se vai trabalhar em tudo aquilo que “respeita ao acompanhamento da vítima como na atenção ao agressor” –, sem gritar “alto!, e pára o baile!; isto não é assunto de Deus; é de César!”

Que a Igreja Católica se entretenha e nos tente entreter com as diligências que bem entender com vista a eventuais castigos divinos ou eclesiásticos, está no seu direito como entidade privada.

Porém, sobre aquilo que faz ou sobretudo não faz a Procuradoria-Geral da República, já é algo que nos diz respeito. E pessoalmente, julgo que já deveria estar no terreno para ouvir as 102 pessoas identificadas pela tal Comissão de Pedro Strecht, e outras mais. Deveria estar já a vasculhar toda a documentação da Igreja Católica onde possa constar informação com relevância penal para identificação de crimes, e dos respectivos criminosos e seus cúmplices (que também são criminosos). E ontem já era tarde.

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