Não me lembro de ouvir falar em eleições de vice-presidentes para a Assembleia da República. Será provavelmente um lapso meu, mas, daquilo que me recordo, eles apareciam simplesmente nas sessões plenárias, passavam a palavra de A para B, de vez em quando ausentavam-se para uma ou outra necessidade fisiológica, e era isso. Sem grandes dramas ou confusões.
Hoje já sei mais qualquer coisa sobre o tema porque, graças ao Chega, há três semanas que vejo debates sobre o Diogo Pacheco Amorim.
Existem dois méritos inegáveis da extrema-direita portuguesa. O primeiro é o de conseguirem trazer, para a agenda política, temas que não interessam ao menino Jesus. O segundo é o de se contradizerem a cada passo das polémicas que criam e, mesmo assim, aproveitarem a onda gerada para se vitimizarem.
Vamos por partes. O Chega apresenta-se como um partido anti-sistema. Não é que a maioria acredite, basta ver o percurso de André Ventura, mas foi essa a mensagem passada. Se bem me recordo da última visita à minha mãe, ali no concelho do Seixal, numa das rotundas perto do afluente do Tejo pontificava um cartaz enorme com a estampa “dia 30 vamos abanar o sistema!”.
Qual foi então a primeira coisa que o Chega fez depois de dia 30, assim que conseguiu formar um grupo parlamentar? Tentar entrar para o sistema…
O cargo de vice-presidente, com direito a gabinete próprio, carro e motorista, é exactamente a personificação do sistema que o Chega afirma querer combater. Pessoalmente nunca tive qualquer dúvida, mas, para a próxima, sugeria mais calma ao pastor André. É que nem tiveram tempo de tirar os cartazes para que as pessoas se esquecessem das parangonas eleitorais, e já a extrema-direita voltava a dar o dito por não dito.
Ficámos durante semanas a discutir um não assunto. Não há sequer tema para debate. O Chega pode indicar um vice-presidente para a eleição, tal como fizeram. Os restantes deputados votam. É isso. Por isso se chama eleição e não nomeação. Tudo dentro da lei, tudo dentro da Constituição.
Ventura aproveita a recusa do Parlamento para trazer a sua verdadeira força: a vitimização. Não só o Chega marca a agenda durante semanas como André Ventura grita em frente às câmaras pela tradição parlamentar que é recusada ao Chega. Alguém lhe explicou, julgo ter sido Isabel Moreira, que tradição não é lei. E que garantia de resultado numa eleição, como pretende o Chega, não é democracia, é regime de Estado Novo do exemplar Marcelo Caetano.
Uma nota para pessoas inteligentes, como Adolfo Mesquita Nunes ou Lobo Xavier, que tentaram comparar Diogo Pacheco Amorim, um “homem culto e afável” com outros “bombistas no parlamento”, e o Chega com “o PCP que defende de facto ditaduras”.
Destaque para Pedro Frazão, novo deputado do Chega, já condenado em tribunal por difamação contra Francisco Louçã, que disse sobre o passado bombista no MDLP, e cito, “o Dr. Pacheco Amorim só tinha 24 ou 25 anos nessa altura!”. O que me parece fazer sentido. Uma coisa é andar metido em atentados e mortes, como por exemplo do padre Max, quando se tem 25 anos. Outra, bem diferente, é fazê-lo aos 70. Uma pessoa, entretanto, perde aquele sangue na guelra e a morte parece que já não sabe ao mesmo.
Aliás, Pedro Frazão caiu-me no goto, devo dizer. Trata-se de um discípulo de Ventura bastante mais calmo. Desde logo tem a condenação por difamação que, a reboque do líder, é uma espécie de requisito para entrar no grupo parlamentar do Chega. Depois, com um sorriso e de forma tranquila, interrompe cada adversário de debate na mesmíssima forma patenteada por Ventura, marcando um estilo de pocilga no confronto de ideias.
Imaginem, por segundos, uma sessão plenária dirigida por um partido que não se revê na Constituição, que defende ideias anti-democráticas, que quer um Estado mínimo e um controlo privado de dinheiro público e que vê com bons olhos o autoritarismo. Bem sei que em Portugal já nos habituámos a bater repetidamente no fundo, mas, até nós, temos limites.
Ventura diz que o Parlamento não respeita os 7% que votaram no Chega o que, como se percebe, não é verdade. Tanto que respeita que um grupo de extrema-direita tem hoje 12 lugares no órgão máximo da Nação, pode indicar um vice-presidente e terá, provavelmente, presidências de comissões parlamentares.
O facto de esse mesmo Parlamento chumbar o nome de Diogo Pacheco de Amorim significa apenas que os 93% que não votaram no Chega têm, felizmente, uma representatividade maior.
E isso, por muito que custe a André Ventura e afilhados, chama-se democracia.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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