Vértebras

Ivermectinagate: que fazer com estes jornalistas?

Vértebras

por Pedro Almeida Vieira // Fevereiro 21, 2022


Categoria: Opinião

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A CNN Portugal, através do jornalista-estagiário Henrique Magalhães Claudino (TP 886), adiante tratado por HMC, fez mais uma das suas, depois de em Dezembro me ter feito esta. E o pior é que, mais uma vez, foi seguido fielmente por outros media, como o Correio da Manhã, Público e Sábado, pelo menos.

A “bomba” de HCM até parece possuir todos os ingredientes para um escândalo em redor da ivermectina, para um Ivermectinagate, igual ou pior ao Remdesivirgate, da Gilead, que ontem sugeri.

Na suposta “bomba de HCM, temos um médico – António Pedro Machado – que, segundo o título da CNN Portugal, “defende antiparasitário de piolhos contra a covid-19 [e que] recebeu 224 mil euros da farmacêutica que o produz”.

Contudo, não tem. Tem sim motivos suficientes, e demasiados, para nos benzermos sobre o estado da imprensa em Portugal, e, hélas, sobre a formação dos jovens jornalistas e sobretudo sobre a ética e a deontologia dos jornalistas seniores da chamada legacy media ou imprensa mainstream.

Ivermectina, na sua versão original, da Merck Sharpe & Dohme.

Vamos lá ver então como o suposto Ivermectinagate é, na verdade, sim, uma montanha a parir um camundongo – aqui mais apropriado do que um rato, por estarmos a falar de fármacos, dado este roedor ser comummente usado em ensaios clínicos.

O título de HCM, na sua peça da CNN Portugal, daria logo para uma pergunta: mas qual farmacêutica?

Mas, calma! HCM explica no corpo do seu texto: é a A. Menarini, uma farmacêutica italiana.

HCM explica que “segundo a Plataforma de Comunicações – Transparência e Publicidade do Infarmed, na edição de 2021”, um evento organizado pela empresa detida por António Pedro Machado (Update em Medicina, Lda.) “recebeu 119.802 euros da farmacêutica A. Menarini Portugal”, uma sucursal do grupo italiano, acrescentando que “em 2020, este valor chegara aos 32.035,10 euros.”

E diz ainda HCM que “o maior patrocinador em 2021” da Update em Medicina Lda. foi a A. Menarini Portugal.

Henrique Magalhães Claudino (HMC), jornalista-estagiário da CNN Portugal.

Primeira “argolada”, ou mesmo mentira de HCM: a A. Menarini não foi, na verdade, a principal empresa patrocinadora em 2021 da Update em Medicina Lda.: foi sim a portuguesa BIAL, que entregou 170.799 euros naquele ano.

Um pormenor? Não.

Na verdade, HCM omitiu que a Update em Medicina Lda. foi até pródiga em receber apoios de farmacêuticas para os seus cursos médicos. De forma directa, e sobretudo em 2021, a empresa de António Pedro Machado recebeu financiamentos de mais 20 empresas do sector farmacêutico, para além da A. Menarini Portugal.

HCM omitiu, de igual modo, que estes apoios das farmacêuticas visavam também o pagamento de formadores dos médicos inscritos nos cursos organizados pela Update em Medicina Lda., muitos dos quais com a inscrição paga pelas mais diversas empresas deste sector.

De acordo com o relatório e contas de 2020 (último ano fiscal), a Update em Medicina Lda. teve receitas de 499.087 euros e gastos com pessoal e serviços externos de 298.375 euros, acabando com um lucro líquido de 71.479 euros, após pagar 38.380 euros de impostos ao Estado.

E por que razão não terá HCM gastado uma letra sobre tudo isto? Talvez porque sabia que lhe estragaria a tese: a de que António Pedro Machado – efectivamente um declarado defensor do uso de ivermectina contra a covid-19 – recebera dinheiro para fazer lobby a favor de uma empresa interessada em vender aquele produto.

Montantes recebidos (em euros) pela Update em Medicina Lda. das farmacêuticas em 2020 e 2021. Fonte: Infarmed.

Se HCM escrevesse que, por exemplo, na lista de patrocinadores da Update em Medicina Lda. encontra-se a Pfizer – que lhe concedeu apoios de 18.450 euros, em 2020, e de 12.300 euros, no ano passado –, a coisa soava estranha.

De facto, sendo António Pedro Machado um suposto lobbista – na tese de HCM –, não faria então muito sentido que fosse um dos subscritores de uma carta aberta a pedir à Direcção-Geral da Saúde a suspensão das vacinas contra a covid-19 em crianças saudáveis, uma vez que estas são comercializadas pelas Pfizer.

Teria a Pfizer “contratado” António Pedro Machado para fazer lobby ao contrário? Ou António Pedro Machado mostrou, ao co-assinar a carta aberta, a sua independência, criticando uma decisão política, a qual, havendo um recuo (suspensão da vacinação em crianças), prejudicaria uma empresa que o patrocinava?

Nunca saberemos a interpretação de HCM.

Mas mais curiosa, ou sintomática de patetice, ou sinal de má-fé ou de má formação (profissional e cívica), é ainda a tese de HCM de que António Pedro Machado estaria, com a sua defesa da invermectina, a ser “pago” pela A. Menarini, de modo a beneficiar a “Menarini Group, empresa que, na Índia, produz um medicamento à base de Ivermectina (o Ivecop), utilizado para combater infecções parasitárias do trato intestinal, da pele e dos olhos”.

Além de HCM ignorar, enfim, o que faz a ivermectina – um fármaco que só por lamentável asnice pode ser olhado como um mero “antiparasitário de piolhos”; pelas suas potencialidades, já fez dois investigadores receberem o Prémio Nobel da Medicina em 2015 –, tudo isto encaixa numa tese estapafúrdia.

Edição do Correio da Manhã de 10 de Fevereiro deste ano, um dia após a publicação da peça da CNN Portugal.

E a tese é esta: uma empresa italiana “compra” um médico português, através da sua sucursal portuguesa, para que este faça lobby em Portugal e assim beneficie uma sucursal indiana que produz aquele fármaco, que nem sequer exporta para Portugal.

Caramba!

Bom, mas dirão que poder-se-ia dar o caso de haver interesse da A. Menarini em expandir negócio em Portugal, intento agora denunciado por este novo “Woodward & Bernstein português”, de seu nome HCM.

Seria má ideia, garanto.

Primeiro, porque a ivermectina em Portugal, se fosse negócio a expandir-se por conta da covid-19, tal já se tinha verificado, e nem sequer pela mão da A. Menarini.

Em Portugal existe já uma autorização de introdução no mercado (AIM) obtida pela sucursal portuguesa da Laboratoires Galderma, uma joint-venture da Nestlé e da L’Oreal – que, aliás, nunca financiou a empresa de António Pedro Machado. É certo que essa AIM se aplica a uma pomada de ivermectina, para tratamento da rosáceas, mas se o negócio fosse assim tão florescente, por certo seria fácil usar o princípio activo para passar a produzir comprimidos.

Na verdade, e isso já terá sido vislumbrado pelos leitores mais atentos ao longo deste meu texto (pelas fotografias que o acompanham), a tese de HCM é obtusa – e lamentável a forma acrítica, mais uma vez, como os outros jornais (re)pegaram no tema (o Correio da Manhã, inclusive, fez manchete) – sobretudo porque, enfim, a ivermectina nunca poderia fazer enriquecer a A. Menari nem outra qualquer farmacêutica na Índia, em Portugal ou resto do Mundo.

Nem com mil Machados, mesmo se António Pedros, espalhados por todos os continentes e ilhas.

Nem que agora se descobrisse que a ivermectina, afinal, tinha mesmo um efeito anti-viral contra a covid-19.

Marcas de genéricos da ivermectina.

Por um simples motivo: a ivermerctina não tem patente, sobretudo por via da disponibilidade, a partir de 1987, da Merck Sharpe & Dohme (MSD) em doar ivermectina para controlo de duas devastadoras e incapacitantes doenças tropicais: a oncocercose (ou cegueira dos rios) e a filariose linfática.

Essas doações encaixam-se no Programa de Doação de Mectizan, nome pelo qual é mais conhecido este fármaco, sendo co-administrado com albendazol, também doado, mas pela GlaxoSmithKline (GSK). Este programa de beneficência é, aliás, a coqueluche (não do sentido de sinónimo de tosse convulsa) da indústria farmacêutica.

Apesar disso, a MSD continua a comercializar a ivermectina para uso humano, sob a marca Stromectol – que pode ser usada para a sarna, incluindo a de jornalistas pouco atreitos a códigos deontológicos.

Mas há mais multinacionais interessadas neste agora genérico. Para uso humano, encontramos a helvética Sandoz e as norte-americanas Abbott e Mylan. No continente africano também se identifica a sul-africana Aspen, que comercializa ivermectina sob a marca Ivermax. Portanto, já não é só a italiana A. Menarini!

Porém, e na Índia? Como é?

Ivecop, marca da ivermectina produzida pela A. Menarini India.

Lamento, ou regozijo-me (?), imenso em informar HCM – e mesmo a Direcção Editorial do Público que fez um acrescento deplorável, de pedantismo ridículo e ignaro, ao direito de resposta de António Pedro Machado – que, além da Ivecop produzida pela A. Meranini Índia, temos por lá a vender ivermectina em comprimidos – preparem-se! – as seguintes farmacêuticas indianas: Abia Pharmaceuticals (sob a marca Ermect), Abod Pharmaceuticals (Abodmec), Agron Remedies (Iverag), Ajanta Pharma (Ivrea), Akumentis Healthcare (Ivervirl), Alicanto Drugs (Ivopi), Ankran Biotech (Iveran), Arlak Group (Aver), Bennet Pharmaceuticals (Isco), Biochemix Healthcare (Paranix e Tinbest), Biorex Healthcare (Ividoc), Blubell Pharma (Dinzo), Brinton Pharmaceuticals (Scabover), Canbro Healthcare (Ivercan), Canixa Life Sciences (Itin), Care Formulation Labs (Ivertac), Connote Healthcare (Scabivert), Cubit Healthcare (Iverise), Dellwich Healthcare (Vernt), Dermawin Pharmaceuticals (Ivel), Dewcare Concept (Vermin), Domagk Smith (Ivermect), Dr D Pharma (Ivercet), E Derma Pharma India (Iviturn), East West Pharma (Ivercid), Efedra Pharmaceuticals (Fedramect), Ethinext Pharma (Ivscab), Evans Healthcare (Evitin), FDC (Ivsit), Finecure Pharmaceuticals (Iverfine), Gary Pharmaceuticals (Imec H ), Genpharma International (Ivamer), Globetus Therapeutics (Globetin), Healing Pharma India (Iverheal), Helios Pharmaceuticals (I), Heramb Healthcare (Iverfast), Household Remedies (Hvtek), Ikon Remedies (Iverzide), Innovative Pharmaceuticals (Ivernex), Intra Life (Iverlife), Iris Biosciences (Iverhub), JB Chemicals and Pharmaceuticals (Ivernock), Johnlee Pharmaceuticals (Iverjohn), Kaizen Research Labs India (Zen Mectin), Kivi Labs (Jetta), Knoll Healthcare (Imrotab), Lakssha Pharmaceuticals (Ivelak), Macleods Pharmaceuticals (Iverhope e Ivernew), Macro Labs (Ivercop), Mankind Pharma (Iverkind, Vermact e Vermikind), Medichi Biocare (Iverchi), Mediispecs (Ivermed), Medishri Healthcare (Iverscan), Mefro Pharma (Verpin), Megma Helathcare (Votrin), Meridian Medicare (Mectin), Merion Care (Ly Mectin), Micro Labs (Vermectin), Nidus Pharmaceuticals (Nectol), Noel Pharma India (Iverwar), NuLife Pharmaceuticals (Iverscab), Oaknet Healthcare (Combactin), Olcare Laboratories (Avertol), Organic Laboratories (Ivory), Palson Derma (Orascab), Panzer Pharmaceuticals (Iverpan), Psychotropics India (Iverpil), Psyco Remedies (Iversol), Pulse Pharmaceuticals (Imectin), Remedial Healthcare (Iverdon), Roussel Labs (Iverwon), Rowan Bioceuticals (Scaberase IF), Rowlinges Life Sciences (Scabsafe), Santo Medi Sciences (Ivy), Satven and Mer Pharma (Iverin), Schwitz Biotech (Evert), Sigma Softgel and Formulation (Zeoriser), Sun Pharmaceutical (Ivermectol), Symbiosis Pharmaceutical (Iver, Ivernorm e Ivozol), Synergy Pharmaceuticals (Ecomectin), Systopic Laboratories (V Sys), Taj Pharma (Iverotaj), The World Wide Pharma (Wormectin), Tripada Biotech (Ivert), Will Impex Pharmachem (Impect), Wish Life Pharmaceuticals (Iverwish), Worth Medicines (Ectover), Zee Laboratories (Iroshell e Evertin), Zenlabs Ethica (Ivcol), Zuventus Healthcare (Scavista) e Zydus Healthcare (Iveloc e Ivertreat).

Contaram todas? Não?! Eu digo então: são 92 empresas farmacêuticas, só na Índia, a produzir genéricos de ivermectina.

A A. Meranini é apenas uma; só é mais uma; somente mais uma, o que a faz uma, mais as outras 91.

photo of shouting horse under cloudy sky

Será que o médico António Pedro Machado se “vendeu” para beneficiar a A. Meranini Índia e mais 91 farmacêuticas indianas para venderem um medicamento genérico?

Teremos um Ivermectinagate? Ou apenas uma Ignorânciagate na nossa imprensa?

Ah, e já agora, há mesmo uma loção para piolhos, sob a marca Sklice, contendo ivermectina. É produzida pela Arbor Pharmaceuticals, farmacêutica norte-americana. Para que HCM tome boa nota dessa informação. Pode precisar dela!


Disclaimer: Nunca tomei ivermectina. Não tenho opinião formulada sobre os seus efeitos contra a covid-19, além do conhecimento da leitura de diversos estudos científicos que a colocam ainda com incertezas sobre a sua eficácia.

Considero-a, porém, um fármaco milagroso (pela sua acção contra outras doenças) que não merecia a campanha “difamatória” feita pela imprensa mainstream.

Não sou favorável à ligação de farmacêuticas com médicos que exerçam funções públicas (em hospitais do SNS, por exemplo). Julgo mesmo que a formação contínua dos médicos deveria ser uma actividade regulada e completamente financiada pelo Estado, independentemente de poder ser produzida por empresas não-farmacêuticas.

Conheço e, salvo erro, falei quatro vezes com o médico António Pedro Machado no último ano, a última das quais em Janeiro, ou seja, antes do artigo de HCM.

Para a elaboração deste texto não contactei este médico, e recorri à compra da Certidão de Contas Anuais, no portal do Estado, para aceder às contas de 2020, último ano fiscal, da Update em Medicina, Lda.. Para tal, foram gastos cinco euros.

Para conferir os dados usados por HCM, recorri à consulta da Plataforma da Transparência e Publicidade, onde pode ser confirmado o seu erro relativo ao maior patrocinador da Update em Medicina Lda..

Pensei e trabalhei para a pesquisa e execução deste texto.

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