Visto de fora

O dia em que Putin nos estragou a prosa

person holding camera lens

por Tiago Franco // Fevereiro 22, 2022


Categoria: Opinião

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Julgo que foi Ricardo Araújo Pereira quem, em tom humorístico, deu a melhor receita até ao momento para analisar a tensão entre a Rússia e a Ucrânia.

Disse, e cito de cor: “gosto de ouvir o que têm a dizer aqueles que afirmaram que o Iraque tinha armas de destruição maciça. Depois, em princípio, é fazer o contrário”.

Faz algum sentido. Há mais de uma semana que Joe Biden grita aos quatros cantos que, hoje é que é! A CNN dá-nos, diariamente, várias opções de ataque ao território ucraniano, com base em informações das inteligências francesa, inglesa ou americana. E nada acontece. Até Nuno Rogeiro, que normalmente mantém um tom sério nestas coisas, ocupou boa parte do seu programa “Leste-Oeste” a falar de bloopers e episódios caricatos.

St. Basils Cathedral

Mas centremos a discussão em dois pontos essenciais. O que quer realmente Putin e, já agora, a NATO?

A primeira coisa que a NATO não quer, nem oferecida, é a Ucrânia. Entre presidentes pró-russos, revoluções, deposições, independentistas, acusações de corrupção, eleições falseadas, grupos nazis e, agora, um comediante à frente do país, o xadrez ucraniano é de uma complexidade tal que dificilmente o Ocidente se poderia segurar a qualquer tipo de estabilidade para justificar fosse o que fosse.

Por outro lado, a NATO não vai correr o risco de aceitar um novo membro que tem disputas territoriais com a Rússia.

Já Putin, apesar de não ser grande democrata, vê o mesmo que todos nós, a expansão da NATO para leste. Um tratado de defesa militar que, desde a queda da URSS, deixou de ter a raiz da sua existência, mas, como se percebe, nunca parou de ir ocupando os territórios circundantes da Rússia.

Seria um exercício interessante o de pensarmos como reagiriam os Estados Unidos se, durante umas décadas, os russos fossem instalando bases no México, em Cuba, na Jamaica ou no Canadá? Melhor, como veria a comunicação social do Mundo Ocidental essa movimentação? Nós acabamos sempre por formar opinião sobre a História pela forma como esta nos é narrada.

Sobre essa dualidade de critérios há ainda um pormenor relevante. A NATO, que agora defende que os territórios ucranianos com maioria étnica russa devem permanecer na Ucrânia, foi a mesma NATO que em 1999 bombardeou a Sérvia, para que esta abrisse mão de 20% do seu território onde estava uma maioria albanesa (Kosovo).

Portanto, percebemos sempre em cada capítulo do confronto de potências que, a chamada comunidade internacional, não defende o que está certo ou o que é melhor para as populações. Defendem, cada uma das potências, o seu próprio interesse. E a comunidade internacional segue o rasto do dinheiro.

No caso da NATO, uma espécie de cão de fila do governo americano na Europa, qualquer hipótese de conflito na Ucrânia é óptimo. Desde logo porque podem vender armas aos ucranianos, mas não precisam de gastar dinheiro no envio de tropas. Depois, porque, qualquer limitação ao fornecimento de energia na Europa, que passe pela Ucrânia, pode ser substituído por fornecimento americano. E é por isso que Biden grita todos os dias. Está no Bolhão da Real Politik, a puxar pelo negócio.

man in black leather jacket and brown pants standing beside black and white wall

O que fez afinal Putin? Obviamente, não invadiu a Ucrânia, como se percebia pela quantidade de tropas na fronteira (excepto para os analistas da CNN que já tinham o caminho traçado até Kiev), e deixou os separatistas no leste ucraniano fazerem o trabalho de sapa.

Depois, reconheceu à maioria russa no território o direito à independência. A partir daqui, mesmo que mais ninguém no mundo reconheça estes territórios, qualquer ataque ucraniano passará a ser um ataque à Rússia. Em resumo, uma repetição da guerra dos 5 dias na Geórgia com as zonas fronteiriças da Ossétia e Abecásia. Estava nos livros.

Putin quer recuperar o controlo de partes da União Soviética onde foram deixadas populações russas, depois de afastados os nazis no caminho para Berlim. Pelo meio da jorna ainda recupera algumas prendas oferecidas, como a Crimeia. E pode, como se vê, pode.

Os textos entretanto escritos ficaram obsoletos em 24 horas, e começam, a partir de hoje, novos diretos de especulação. A lógica, na minha opinião, será a de que Putin procura zonas tampão, territórios na fronteira, áreas com maiorias étnicas russas. Mas não estou a ver isto chegar para grandes directos de Kiev e horas de Azeredo Lopes. É preciso usar esta declaração de independência de forma algo mais espectacular e preparar novos gráficos com setas vermelhas.

Assim, esta manhã, já se contavam os possíveis mortos causados pela nova invasão russa e o caminho escolhido até Kiev. Amanhã, Pedro Mourinho dir-nos-á que ainda não aconteceu nada, mas estará para breve, sente-se no ar. Biden pedirá sanções, enquanto oferece descontos nos morteiros. Em princípio temos audiências garantidas para mais um mês. Depois começa o Big Brother Quase Famosos 2.

Impérios. São impérios na sua formação contínua e afirmação de poder. E nós, neste cantinho sem direito a audiência na mesa dos seis metros, ficamos a ver a posição da União Europeia de subserviência a quem lhe der energia e a ouvir o que aí vem nas vozes de Marques Mendes ou Helena Ferro Gouveia. São sortes.

Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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