Não pode ninguém decente com o mínimo espírito humanista e civilizacional aceitar as atrocidades perpetradas pelas tropas russas a mando de Vladimir Putin nem tão-pouco considerar que estas se devem, em exclusivo, às suas paranoias, à sua maldade e aos seus sonhos de czarismo.
O Mundo, e as suas guerras, nunca foram coisas simples nem fáceis de explicar, nem de entender. E quem conheça um pouco de História saberá, ainda mais no Leste da Europa, que batalhas sanguinárias se fizeram por aspectos bem mais comezinhos do que certo país não apreciar que um seu vizinho, ainda mais “irmão”, ande em namoros com quem não aprecie, neste caso os países da NATO. Foi por razões de fé (religião), por disputas de famílias, por traição, por desaforo, por dinheiro, por coisas mundanas e do Mundo, humanas.
Aliás, convém recordar que se Olivença se perdeu para Espanha – ainda hoje não oficialmente reconhecido por Portugal – foi por razões de alianças: o nosso país recusou aceitar em 1801 aliar-se à Espanha e França contra a Inglaterra, nosso parceiro histórico. A Guerra das Laranjas seria mesmo o prenúncio das invasões napoleónicas anos mais tarde.
Em todo o caso, não pretendo aqui, e agora, tecer grandes considerações sobre a génese e as razões e desrazões do conflito russo-ucraniano, excepto considerar que a única solução, para evitar um banho de sangue ou um recrudescimento para um nível de guerra mundial, seja a via negocial.
Por muito que nos custe, nas actuais circunstâncias – e isso já sucedeu milhentas vezes –, a via militar maciça para fazer recuar a Rússia de Putin parece a pior solução, mesmo sendo aquela que nos mais reconfortaria a consciência e o coração.
De igual modo, as sanções prometidas e em execução – desde censurar pessoas da Cultura pelo “crime” de serem próximas de Putin até “expulsão da Rússia do sistema bancário internacional SWIFT (que afectaria tanto aqueles países como todos os negócios do “lado bom” –, não parecem ser instrumentos muito eficazes para uma solução pacífica.
Derrotar Putin agora é virtualmente impossível; e a prazo apenas através de uma guerra fraticida; e não é isso que ninguém deseja (e se for não está do “lado bom”). Por isso, a solução é fazê-lo sair com uma aparente vitória.
Mas, perguntam, quem sou eu, no meio deste enorme conflito internacional, para tecer estas considerações?
Ninguém.
E é exactamente por isso que escrevo este texto. Num conflito desta natureza, mesmo em países ditos democráticos, valemos cada vez menos – e muito por nossa culpa -, até porque, nos últmos tempos, deixámos que os movimentos sociais e a contestação pública fossem ostracizados e maltratados.
Veja-se, aliás, como foram tratadas pela imprensa mainstream as contestações públicas à gestão da pandemia, entre o menosprezo e a colocação de rótulos, completamente descabidos, como sucedeu recentemente no Canadá.
Por isso, olho agora para os apelos nos jornais e nas redes sociais, e pasmo com as campanhas de mobilização dos portugueses para a crise na Ucrânia.
Por exemplo, o Expresso e o Público fazem eco dos movimentos ucranianos, e colocam mesmo ligações para donativos. Alguns desses financiamentos aparentam servir para a compra de armamento, e não propriamente para acções humanitárias. E pasmo. É esta a função da imprensa portuguesa?
O politólogo Nuno Rogeiro faz um apelo para um “cordão humano pela Paz na Ucrânia”, insistindo para que “não fiques em casa a ver a guerra na TV; intervém, vem para a rua pela PAZ”. E eu pergunto: é essa a função de um comentador português de política?
A Juventude Socialista (JS), a Juventude Social Democrata (JSD), a Juventude Popular (JP), o Livre, a Iniciativa Popular e o Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) juntam-se para organizar amanhã uma manifestação pela paz e contra a invasão da Ucrânia em frente à embaixada da Rússia. E eu pergunto: é esta a função das juventudes partidárias e dos partidos políticos?
E eu respondo, já: é (com excepção de apelos para armamento da “resistência” ucraniana).
Também é.
Porém, lamento que esta capacidade de mobilização, este direito à indignação, esta demonstração colectiva de repúdio seja “apenas” para este tipo de causas. Para as causas boas, para as causas politicamente consideradas boas; contudo, boas sobretudo para as consciências, mas irrelevantes, hélas, para o desenrolar do conflito russo-ucraniano.
Não é no “tabuleiro das ruas” de Lisboa ou de qualquer outro lugar do mundo ocidental que se encontrará uma solução.
De facto, esta mobilização pela Ucrânia faz-me também olhar para o nosso país. Infelizmente, não se vê, em Portugal, este tipo de atitude activa e proactiva, militante mesmo, para outras necessidades domésticas : para uma Justiça melhor; para uma Educação melhor; para um Serviço Nacional de Saúde melhor; para uma Economia mais justa; para um investimento sério na investigação e uma maior penalização da corrupção; para uma gestão política mais equitativa e justa; para uma maior participação pública nas estratégias de investimento; para um país que adopte políticas não discriminatórias; para um melhor país.
Para isso, não vejo jornais mobilizados, comentadores mobilizados, partidos e suas juventudes mobilizadas, pessoas mobilizadas para um “cordão humano”.
E, contudo, ao invés daquilo que sucederá com tudo aquilo que os portugueses fizerem e disserem sobre a Ucrânia – incluindo o português António Guterres na ineficaz Organização das Nações Unidas –, porque no xadrez político tudo isto será irrelevante, se tivéssemos em Portugal metade da ora mobilização, porventura teríamos uma melhor democracia, vidas mais felizes, umas quantas salvas, por certo.
Mas isso parece ser irrelevante. Por norma, preferimos lutas para descansar consciências – porque estamos afastados dos problemas – às lutas pelos nossos verdadeiros direitos, porque nessas lutas os “inimigos” estão próximos, e podem ficar chateados connosco.
É muito mais fácil mobilizarmos portugueses para salvar a Ucrânia do que para salvar Portugal.