Na noite passada, fui relembrar o texto integral do Código Deontológico dos Jornalistas. Convém sempre, mesmo que se tenha os princípios na ponta da língua. A tentação de transigir em determinados contextos – como sucedeu na pandemia desde 2020, e agora ocorre com a nova invasão da Rússia à Ucrânia – é sempre muito elevada. Os jornalistas são humanos, emocionam-se, agem como humanos.
Começa logo assim o dito Código, no primeiro ponto:
“O jornalista deve relatar os factos com rigor e exatidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.”
Há mais 10 “mandamentos”, alguns deles redundantes, mas dois são fundamentais, e obrigam-me mesmo a invocá-los por imperativos de consciência, e como instrumento, enfim, talvez inglório, para defesa de um jornalismo independente. E quando falo de independência não pode significar dependência das vontades circunstanciais, e por vezes caprichosas, dos leitores.
[Tem sido, aliás, muito interessante observar que alguns, felizmente muitíssimo poucos, dos meus leitores não compreendem o significado de “jornalismo independente”, reivindicando mesmo que lhes devolva pequenos donativos ao primeiro sinal de desagrado sobre algo que surge no PÁGINA UM. É, em escala micro, aquilo que sucede na imprensa mainstream, mas com entidades económicas e financeiras de muito maior relevo.]
Num desses “mandamentos” fundamentais refere-se “o jornalista deve combater a censura e sensacionalismo”, enquanto no outro se recomenda que “o jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar”, acrescentando ainda ser sua “obrigação (…) divulgar as ofensas a estes direitos.”
Neste contexto, é uma regra sem excepção: um jornalista jamais pode aceitar a existência de qualquer tipo de censura, mesmo se dirigida a terceiros, mesmo se alegando benefícios para um evidente bem comum.
Nem que seja porque o bem comum é conceito difuso e escorregadio, geralmente definido pelo poder. Ora, a ética é a alma do jornalista; e não há bem comum que justifique um apoio à censura, seja qual for o “tipo” que a impõe, seja qual for o tipo e circunstâncias da sua aplicação.
Sejamos claros: nenhuma censura é boa; nenhuma ditadura sobrevive sem censura; nenhuma democracia vive com censura.
Mas o Código Deontológico nem deveria ser necessário: bastaria uma dose de bom senso e equilíbrio, para um jornalista ser aquilo que deve ser: isento, rigoroso, buscando a verdade, sem tomar aprioristicamente partido de um lado, sobretudo em conflitos. Sobretudo nestas últimas circunstâncias, e no conflito russo-ucraniano, não deve um jornalista comportar-se como um adepto de futebol, ou como um comentador na passadeira vermelha da feira das vaidades.
Vou ser mais concreto.
Parece por demais evidente que, no conflito russo-ucraniano, Putin é o agressor, independentemente das causas, que, em todo o caso, num trabalho jornalístico, devem ser sempre enquadradas. E é ele também um agressor violento, que merece forte e evidente reprovação – e eu, como jornalista, separando de forma clara (e muito clara mesmo) a opinião da notícia, posso e devo dizer que ele é um criminoso.
Porém, tanto na opinião como na notícia, um jornalista deve trabalhar “com rigor e exactidão”, e não serve de desculpa não o fazer “só” porque Putin é um facínora.
Um jornalista não é um cidadão comum.
Alguns, esquecem-se.
Muitos leitores, também.
Um jornalista não é um simples adepto, que observa, relata, instiga as hostes em função de um objectivo: a vitória da sua facção. Um jornalista não serve facções: é um relator e um árbitro dos acontecimentos. Não tem sequer de intermediar nem influir nos acontecimentos, nem deve.
O jornalista não é um agente dos acontecimentos, e daí que deve fazer um esforço suplementar para não ser instrumentalizado, nem instrumentalizar os leitores – como, aliás, se observou durante a pandemia que, por certo, não teria “terminado” assim tão de repente se não fosse o conflito russo-ucraniano.
Numa guerra, a informação e a propaganda confundem-se, muitas vezes. Se houver censura ou condicionamento psicológico – fruto de um sentimento intenso de pertença ou afeição incondicional –, e o jornalista se deixar levar na onda, perde a sua independência e objectividade, e o seu trabalho descamba facilmente para a propaganda.
Pode não ser intencional, mas se um jornalista não for zeloso na verificação de factos, no rigor da informação que transmite, porque enfim a “Rússia é a má da fita”, abre uma caixa de Pandora. Se uma parte que procura manipular o jornalista – e não sejamos ingénuos, mesmo em tempo de paz e assuntos mais comezinhos, as fontes sempre procuram levar água aos respectivos moinhos – observar que consegue uma primeira vez passar propaganda como notícia, e mesmo sendo “apanhado”, continua a ser aceite, jamais deixará de fazer propaganda. Mentirá, porque a mentira passará por verdadeira; a verdade será a mentira.
A propaganda, diga-se, faz parte das regras do jogo – e, por vezes, cai-se na esparrela –, mas um jornalista que entre num jogo onde voluntariamente sabe que está a participar na propaganda, deixa de ser jornalista. Deixa de fazer notícias. E isto não é uma notícia que eu esteja a dar-vos, embora devesse ser: é claramente a minha opinião, que deveria levar a uma reflexão qualquer jornalista.
A coragem no jornalismo não se mede apenas em percorrer estradas sem nexo nas imediações de um “teatro de guerra”, mas, sim, também em enfrentar poderes instalados, em investigar e escrever sobre assuntos delicados, mesmo quando se pode sair prejudicado na sua imagem e na sua vida – ou perdê-la mesmo – por mor da sua independência.
Isto também escrevo a propósito da “mensagem de solidariedade a congéneres ucranianas” feita pelo nosso (e meu) Sindicato dos Jornalistas, onde aliás se consulta o Código Deontológico. Acho bem uma mensagem de solidariedade, mas esta tem um “pecado capital”: denota um enviesamento incompatível com os princípios que atrás enunciei.
Com efeito, é um erro e uma injustiça que os jornalistas ofereçam o seu apoio e solidariedade “apenas” aos jornalistas ucranianos; primeiro, porque não são os únicos potencialmente visados em conflitos armados – que já mataram, desde 1992, um total de 2.128 jornalistas e outros profissionais dos media, de acordo com o Committee to Protect Journalists (CPJ). Aliás, na verdade, o SJ está atrasado alguns anos: os jornalistas ucranianos já precisavam de ajuda pelo menos desde 2014, no decurso da invasão da Crimeia e dos conflitos em Donbass.
[Sobre estes perigos, e as semanas que antecederam o actual conflito, aconselho vivamente a leitura destas breves entrevistas no CPJ aos jornalistas Anastasiya Stanko e Sergiy Tomilenko, este último que ocupa a liderança do União Nacional de Jornalistas da Ucrânia.]
De facto, tanto ou mais que os jornalistas ucranianos, são os jornalistas russos independentes que mais apoio e solidariedade precisam – e de incentivo para não caírem na propaganda e para perseverarem na sua coragem. E não se diga que não há jornalistas independentes na fria Rússia, excepto se a memória for mesmo muito curta: no passado dia 10 de Dezembro foi entregue em Oslo o Prémio Nobel da Paz ao fundador e editor-chefe do Novaya Gazeta, Dmitry Muratov. Já se esqueceram do que ele passou, e os seus camaradas (termo usado entre jornalistas) para receber esta distinção? Se não se recordam, o PÁGINA UM relembra aqui.
Sejamos mais uma vez claros.
A Rússia não é, e muito menos foi antes desta invasão de Putin, um país para jornalistas independentes.
A Rússia ocupa o 11º lugar no triste ranking da Global Impunity Index da CPJ relacionada com homicídios, raptos e aprisionamentos de profissionais dos media. Mesmo não havendo mortes de jornalistas desde 2017 – mas desde 1992 já caíram 58 e há sete desaparecidos há vários anos –, ao longo de 2021 contabilizam-se 14 presos (um recorde): Abdulmumin Gadzhiev, Aleksandr Dorogov, Aleksandr Valov, Alla Gutnikova, Armen Aramyan, Igor Kuznetsov, Ivan Safronov, Natalia, Vladimir Metelkin, Yan Katelevskiy, Osman Arifmemetov, Remzi Bekirov, Rustem Sheikhaliev, Vladislav Yesypenko – os quatro últimos na invadida Crimeia.
O público português pode até ignorar isto; um bom jornalista português não pode, não deve.
Por isso, pasmo ao ver jornalistas, ou responsáveis na imprensa, a apoiarem (nem que seja pelo silêncio) a censura de órgãos de comunicação, e a incentivarem (nem que seja por omissão) a perseguição sobre aqueles que não seguem princípios maniqueístas, como se estivesse em causa um mero despique futebolístico, em que é obrigação de todos vestir a camisola do mais fraco, e se a não veste merece apupos (ou pior ainda) porque estará infalivelmente a favor do inimigo.
São estes os tempos que temos, e a culpa é dos jornalistas, que até metem mais álcool para a fogueira.
Isto não faz esquecer o essencial. Jamais questionei e questionarei o óbvio: a Rússia invadiu a Ucrânia, e está a cometer atrocidades terríveis. Mas o jornalismo não é isto que se tem visto. O jornalismo deve, pelo menos, agir como o russo Novaya Gazeta promete – e aparentemente está a cumprir: “seguir o derramamento de sangue no país irmão e continuar apresentando apenas factos verificados sobre os horrores da guerra.”
É isto que “basta” o jornalismo fazer, e os jornalistas executar. Comecem por ler, por exemplo, a cobertura noticiosa do Novaya Gazeta sobre os conflitos – aproveitando, ademais, as boas traduções já feitas pelos browsers – ou este texto de hoje assinado por Dmitry Muratov e Beatrice Fihn em nome da Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares (entidade que recebeu o Prémio Nobel da Paz em 2017).
Leiam, já agora, também, por exemplo, o excelente artigo de opinião de Julia Latynina, intitulado “Eles não mentem. Eles pensam assim”. Ou então o lúcido e pacificador artigo de opinião de Petr Shelishch, presidente da União dos Consumidores da Rússia. Ou uma análise muito interessante sobre o efeito da desconexão do SWIFT aplicado ao sistema bancário russo e suas implicações directas no quotidiano dos cidadãos daquele país. Ou este artigo do cineasta Vladimir Mirzoev. E tantos outros.
E vejam onde há coragem, onde há jornalismo. Onde há esperança. Onde há gente também a precisar de ajuda e alento para combater a barbárie humana, mesmo se intentada por alguém da sua nacionalidade.
Se acharmos que devemos censurar, estaremos ao mesmo nível de Putin, que começou já a encerrar órgãos de comunicação social classificando-os com “agentes de media estrangeiros”. Hoje foi silenciado canal televisivo Dozhd e a rádio Eho Moskvy. Reparem: o Novaya Gazeta não perdeu tempo a criticar esta medida. E continuará, talvez, até ser silenciada, se deixarmos que a censura até no Ocidente prolifere e seja defendida. A imprensa do regime e os jornalistas russos “dependentes” devem ter achado bem, presumo.
Onde está, enfim, e por fim, a verdade, pergunto-vos?
Estará em jornais independentes russos, como o Novaya Gazeta?
Ou estará apenas e só na imprensa ocidental?
Naquela que, por exemplo, noticiava a chacina de 13 soldados ucranianos numa pequena ilha do Mar Negro – revelando mesmo que o presidente ucraniano os agraciaria com medalhas póstumas –, mas que, três dias mais tarde, anunciava que afinal estavam vivos, dando este volte-face acompanhada com uma mera menção de ser uma “actualização” à informação primitiva.
Eu, por mim, fiz já uma escolha. Como jornalista e como leitor. Não quero censura, e quero apoio a todos os jornalistas. Sei serem escolhas pouco simpáticas nestes tempos continuamente distópicos. Mas se alguém quer ser simpático, não deve jamais querer ser jornalista independente. Está a mais. E a fazer mal às democracias.