Visto de fora

O whataboutismo do momento

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por Tiago Franco // Março 2, 2022


Categoria: Opinião

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Aprecio muito modas linguísticas e bengalas argumentativas. Julgo que nos trazem a vantagem de encurtar discussões, evitar a trabalheira que é articular o pensamento e, como bónus, ainda nos dão uma certa aura de inteligência sem grandes desenvolvimentos.

Na guerra das indignações a que está a fazer furor neste momento é o whataboutismo. Caminham lentamente para remover o “negacionista” da pandemia do pódio mediático. Lembram-se desses tempos, quando uma pessoa que não concordava com o confinamento via a discussão encurtada com a ajuda da bengala do negacionismo? Julgo que vamos por aí no caso do conflito russo-ucraniano, mas com uma componente histórica bem mais interessante.

Debater, nos dias de hoje este tema, é andar literalmente em areia movediça. Vou arriscar, em todo o caso, com um exemplo, e logo se vê.

O Martim rejubila com o fabrico caseiro de cocktails molotov nos subúrbios de Kiev. É um povo a resistir a uma ocupação externa, um exemplo de bravura, um acto heróico que nos inspira a todos.

Pessoalmente, consigo alinhar com este pensamento. O Martim é um gajo que lê jornais, mas não liga muito a História. É informado, mas pouco culto. Junta-se à conversa o Renato, que é um tipo mais dado à História, e que mistura a leitura da imprensa nacional com a internacional. O Renato diz ao Martim: “Ouve lá, não dizias que quando se fabricaram cocktails molotov na Cisjordânia, estávamos perante um acto de terrorismo? Não era afinal a mesma acção de defesa de um povo contra o invasor?”

O Martim pensa cerca de cinco segundos, e dispara: “Renato, isso agora é whataboutismo!”, ou seja, está a fazer uma acusação de se estar a usar outros exemplos, mesmo se semelhantes, que desculpam a actual situação. Portanto, segundo esta corrente de pensamento, é um argumento não possível de ser utilizado. Porquê? Ninguém sabe.

Qual a razão de aceitarmos o bombardeamento da Sérvia, pela NATO, para defender separatistas, mas condenarmos o bombardeamento russo que está a defender separatistas? Nenhuma, mas quando o fazemos, não caímos em whataboutismo, o que é sempre positivo.

O Governo norte-americano, por exemplo, também tem a sua própria definição de coerência. Russos que anexam a Crimeia ou Chineses que chateiam Taiwan, em princípio não; israelitas que anexam colonatos ou fazem paredes altas e sem tectos, já está bom. E nunca, mas nunca, referir as duas contradições em simultâneo, porque, lá está, cairíamos em whataboutismo. E ninguém quer isso.

Os fãs do whataboutismo gostam de analisar os problemas da vida no dia em que começam.

Por exemplo, um tipo fuma durante 30 anos, e algures no processo é-lhe diagnosticado um cancro de pulmão. Passa o resto da vida a tentar perceber como é que aquilo aconteceu, porque os últimos 30 anos são encerrados num bunker.

O que eu ouço quando me dizem “epá!, isso já é whataboutismo“, é isto: um amigo da secundária, que era supercool, porque foi o primeiro a ter uns Air Jordan que não vieram da feira, escreveu isto no mural e eu, que não sabia onde ficava Donetsk até o Paulo Fonseca ir para lá, achei que era um bom drop the mic para finalizar discussões. Ainda por cima é uma linha em estrangeiro. LMAO.

O meu problema com essa bengala é a impossibilidade de se discutir ou resolver qualquer problema que não seja o do momento. Um argumento inteligente seria, por exemplo, que a reacção ucraniana é exactamente igual à palestiniana, e que qualquer uma das invasões é inaceitável. Seja na Sérvia, na Líbia, no Iraque ou na Ucrânia. E venha de que agressor vier. Sem cores, bandeiras ou partidos. Uma invasão é uma invasão.

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Ou então, um fã do whataboutismo diria: “ouve lá… agora o Mundo está com a Ucrânia, vamos fazer pressão para derrubar o Putin. No fim disto vamos safar os gajos na Faixa de Gaza!! Certo??”. Ora, isto já me pareceria algo com sentido, ou seja, o Mundo preocupado com as populações oprimidas.

E reparem, desta forma o whataboutismo desapareceria, porque não existiriam exemplos passados para dar. Estão a imaginar a maravilha? Poderíamos lidar com uma catástrofe de cada vez e ninguém vos pediria o número de crianças mortas no Iémen ontem. O problema é que isso nunca acontece, não é? Há populações no Mundo que podem e devem ser invadidas. Ou são pretos, ou árabes ou estão longe de nossa casa. Outros não podem, e o nosso sentido de decência vem ao de cima.

Três mil mortos na queda das Torres Gémeas foram uma catástrofe que parou o Mundo. Um acontecimento que mudou a História e a nossa vida. A minha pelo menos mudou.

Já os 500.000 que em consequência desse ataque morreram no Iraque, foram danos colaterais.

E ligar os dois acontecimentos, dizem, não é perceber a História ou contextualizar a desproporção da brutalidade. É whataboutismo.

No fundo passamos a vida em discussões circulares sobre qual o melhor império opressor, e ainda há quem acredite que isto é, de facto, uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia.

Há pouco ouvi que os Estados Unidos não tinham qualquer interesse neste conflito, o que, na minha opinião, é como dizer que um vendedor de pipocas não quer saber de milho. Os ucranianos morrem no terreno. Os russos também. Os interesses no conflito começam em Washington e acabam em Pequim.

E sobre mortes há também um dado interessante, mas mórbido. Começam aos poucos a aparecer relatos de desportistas, mais ou menos famosos, mortos em combate. Os líderes são justamente criticados por mandarem jovens para a frente, sem treino, enquanto eles e suas famílias estão resguardados em palácios, bunkers ou até noutros países.

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Guerras combatem-se com exércitos, não com civis. Putin é um assassino, de opositores ou até dos seus próprios soldados, algo que não será original na História da Rússia. E é retratado como tal. Faz sentido na minha cabeça.

Já Zelinsky, guardado pelas forças especiais num bunker de Kiev, obrigando todos os homens entre os 18 e 60 anos a ficarem no país, esperando que a população se atire para cima de tanques com garrafas de vinho em chamas, é um herói. E não concordar com isto, meus amigos, ou comparar a sua acção com a de outros líderes que enviam civis para a morte, é whataboutismo.

Reparem que quando Israel nos diz que o Hamas usa escudos humanos, nós gritamos pela barbárie. Já se mulheres ucranianas atravessam a fronteira a chorar porque os maridos, civis, são forçados a ficar para escudo, achamos ser heróico.

Glória às bengalas e à estupidificação do discurso. A coerência não faz parte da realpolitik.

Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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