O meu filho faz-me perguntas há 11 anos. Todos os dias. Sobre tudo e mais alguma coisa. Até sobre argumentos de filmes e a forma como foram escritos. Pausa a transmissão do dito, e diz: “achas que ele aqui devia ter fugido à polícia pela ponte? Se fosses tu como é que fazias? E não digas não sei; se quiseres inventa”.
Normalmente, respondo: “bom, se isso não fosse um filme com um argumento já escrito e imutável, e, se por acaso, reflectisse algum momento da minha vida, nesse caso eu tentaria fugir à polícia usando uma zona onde me pudesse misturar na multidão, nunca uma ponte porque estaria exposto”.
Pensando eu que isto arrumava o tema, ele acrescenta, “ok, mas se eles tivessem um sniper, estarias a meter a população em perigo”. E seguindo por aí até todas as combinações possíveis de hipotéticas questões.
É assim desde o dia em que ele começou a articular palavras suficientes para formar uma interrogativa.
A Ucrânia é tema cá em casa, e a posição da Suécia, também. Os miúdos falam na escola, os professores explicam o conflito. O tik-tok está cheio de propaganda. Falsa, menos falsa, verdadeira. Há de tudo. Vão-se formando opiniões em cabeças mais jovens com a inocência que uma vida na bolha oferece.
Diz-me em tom de desafio que a Suécia devia entrar para a NATO e que a Rússia nunca teria coragem de nos atacar. Segundo ele, a NATO só não deixa um país entrar se já estiver em guerra, portanto, se fizermos o acordo muito depressa, o Putin nem a vê passar. É uma espécie de diplomacia expresso. Para ele não há forma de evitar a terceira guerra mundial, e temos que lutar. Os amigos acham o mesmo.
Na redondeza de classe média-alta, quase sem emigrantes, e onde nós somos uma minoria, o meu filho e os amigos vivem numa redoma de privilégio, e olham para Kiev como um episódio da Guerra dos Tronos.
Curiosamente, ou porque ainda não têm maturidade para tal, esquecem-se das 10 famílias de sírios, colocadas aqui no bairro, a 200 metros da nossa casa, cujas crianças foram distribuídas pelas turmas deles, e que, no primeiro dia de aulas, apenas tinham a roupa do corpo. Famílias que procuraram refúgio na Suécia, e que não faziam a menor ideia onde ficava Eklanda, Mölndal ou Gotemburgo, mas que foram forçadas a recomeçar do zero. A sair sem olhar para trás.
Perguntei-lhe se conseguia sequer imaginar um cenário desses. Fechar a porta, meter três malas no carro, e fugir para Portugal, deixando para trás uma casa destruída, e o bairro, onde esteve toda a vida, arrasado. Quão excitante seria isso?
Melhor: se nem em Portugal tivéssemos abrigo, e, tal como ucranianos, sírios, afegãos ou palestinianos, ficássemos dependentes da caridade alheia, dos campos de refugiados, de asilo num outro país que nada nos dissesse? Quão excitante seria entrar nesse mundo de horror não transmitido no Netflix?
Peguei no caderno, onde fazia os exercícios de Matemática, e esqueci a minha irritação momentânea com a simplificação de equações. Desenhei a Europa, a Ucrânia, as regiões separatistas. Expliquei o que era a URSS, a Cortina de Ferro, a NATO. Contei a história de outros ditadores que, como Putin, reclamavam o seu lugar na História. Falei de combatentes russos que não sabiam o que ali faziam, do batalhão Azov, dos oito anos de Donetsk, do Kosovo.
Falei dos inocentes que sofrem na pele as loucuras de quem decide e no fim, lembrei-me de uma imagem que vira há pouco tempo, num jornal qualquer, onde quatro miúdos ucranianos, com 18 anos, se apresentaram para o “combate” com capacetes de bicicleta e joalheiras de skate.
Perguntei-lhe se, embora aquela imagem desse uma história super cool para umas horas de internet, achava que aqueles jovens teriam alguma hipótese de sobreviver numa frente de guerra contra soldados profissionais e bem equipados. Ele disse que não, não tinham.
Chegámos, pois, ao conceito de carne para canhão.
Pergunta-me, então, quase indignado, como é que mandam pessoas sem treino para a guerra.
Eu digo-lhe que cada civil que se junta ao exército na Ucrânia tem um treino de três dias antes de ir para o terreno. Vejo a expressão a mudar e alguma preocupação no semblante. “Só três dias?? O que é que se aprende em três dias??”
Fica algum silêncio. Nunca há silêncio quando o meu filho está por perto. Nunca.
Faz mais um exercício de Matemática e pergunta: “então…se a guerra chegar aqui, se a NATO entrar, e se os civis forem chamados, tu és obrigado a ir também?”. “Acho que sim”, respondi.
“E também terás só três dias de treino?”, acrescentou. “Não sei, pode ser que tenha uma semana. Em Portugal a coisa faz-se sempre mais devagar”, disse eu, tentando desanuviar o clima.
Imagino que os segundos seguintes tenham sido passados a construir uma imagem futura menos agradável.
De repente, com os olhos em lágrimas, dirige-se a mim visivelmente chateado. Quase como se a culpa da invasão da Ucrânia fosse minha. Disse, reclamando: “então nem vais aguentar três dias na frente da batalha!! Tu nem a pistola da minha VR consegues carregar depressa!!”
Abracei-o, e disse que não se preocupasse. Se os russos conseguirem pagar o combustível para levarem os tanques até à Margem Sul, a malta rouba-lhes as lagartas na Fonte da Telha, e dali já não passam. A sensação de perda de algo ou alguém querido, fê-lo pensar de forma mais racional sobre os perigos da guerra, da escalada do conflito ou de encurralar um doido, com armamento nuclear, deixando-o sem outra saída que não seja disparar.
Um simples raciocínio que uma criança de 12 anos consegue compreender, mas, aparentemente, uma lógica impossível de perceber por uma ex-candidata presidencial que, ontem, apelou ao início da III Guerra Mundial.
De repente lembrei-me que 541.556 pessoas, há cerca de um ano, achavam que Ana Gomes tinha perfil para ser a voz mais alta de Portugal.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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