Derrotar Putin é por estes dias uma prioridade. Não pode haver tibiezas, nem qualquer subterfúgio semântico. Não pode haver adversativas, nem eufemismos. É preciso, é urgente a ingente tarefa de derrotar o gangster.
À hora do almoço, enquanto descascamos uma laranja à sobremesa, assistimos em directo ao grande espectáculo da guerra. Gomo a gomo a laranja vai sendo deglutida. A guerra continua até ao café.
Desligamos depois a televisão e regressamos ao trabalho. De vez em quando, sempre que possível, numa qualquer pausa, aproximamos o ouvido das notícias. A guerra continua lá. Está sempre lá, onde quer que seja.
Agora é na Ucrânia e aí a coisa fia mais fino. A Europa, a velha Europa, a sofisticada Europa sente o chão tremer com o estrépito das bombas. Em paz há mais de setenta anos, depois de uma guerra insana que ainda não esqueceu, o velho continente sente-se ameaçado, humilhado, recordando invasões antigas.
Abre fronteiras até agora fechadas a sete chaves a outros povos em idênticas aflições. As fronteiras estão abertas. Seria demasiado atroz a visão de gente bombardeada e perseguida sem poder sair do local da carnificina. Não nos esqueçamos, porém, de todos os outros que em vão pediram que as portas lhes fossem abertas.
Os comboios a abarrotar de gente aflita encaminham-se pelo meio da neve a países limítrofes, também eles em aflição.
Numa sinistra reedição da guerra fria, o perigo nuclear reaparece.
O chamado Ocidente responde com sanções económicas. O rublo deprecia-se a olhos vistos. As transações internacionais são bloqueadas. Congelam-se os ativos do Banco Central russo, excluindo-se também outras entidades bancárias do sistema financeiro internacional. Congelam-se as contas da oligarquia.
Bate-se em Putin, onde dói a Putin. Tudo certo.
E podíamos ficar por aqui. Mas não.
Tratando a cultura como um activo bancário, neste mundo ocidental apela-se ao boicote à cultura russa, como se a música, a literatura ou a arte não pertencessem àquela outra dimensão de património da humanidade. Foi suspenso um curso de Dostoiévski na Universidade de Milão; excluem-se cineastas russos da participação em festivais; maestros são impedidos de dirigir orquestras; pianistas substituídos.
A cultura não se proíbe. Não se cala. Não se reprime.
Esta visão míope, maniqueísta, censória, reflecte a apropriação da arte e da cultura como se se tratasse de uma mercadoria que se pode fechar num qualquer armazém a cadeado.
Não. Não pode. Putin, dentro da pobre Rússia oprimida, exerce uma censura obscena sobre tudo o que possa cheirar a comunicação ocidental. Num superlativo gesto de violência proíbe palavras. Guerra ou invasão deixaram de existir no léxico russo.
Os que agora querem proibir arte, cultura ou a imprensa russa de livremente circular pelo mundo igualam-se a Putin na fúria censória. A música, o teatro e a literatura não pertencem ao gangster. São de todos nós.
Escritora e advogada