Cometo, neste texto, um pecado capital. Como jornalista, não soube distanciar-me do objeto da notícia. Estou, em simultâneo, a fazer trabalho humanitário. Envolvi-me demasiado para estar agora a escrever notícias “objectivas”.
Antes de partir, sentei-me no sofá, desliguei a televisão, pedi inspiração para um pequeno texto para publicar nas redes sociais. Ocorreu-me uma pergunta: a que saberá a morte?
Sem resposta, comecei a arrumar a mala: duas camisolas, um casaco, dois pares de calças, dois pares de meias, um par de botas e um gorro, e outras coisas habituais e íntimas para um viajante. Bagageira e lugares preenchidos com mantimentos: além de alimentos, medicamentos e material de socorrismo, material logístico.
A família, os amigos e os conhecidos rapidamente espalharam a novidade.
Um dia depois, chegaram os primeiros donativos. A esposa, as amigas dela, os meus amigos ajudaram a separar e embalar os produtos. No dia seguinte já não tinha lugar em casa, nem na garagem, nem no jardim.
Entretanto, não escrevi o texto. Apenas tive tempo para avisar os meus alunos e colegas que não daria as próximas aulas. Avisar o Pedro que, afinal, não tivera oportunidade de escrever o texto sobre as guerras que continuaram a pulular pelo Mundo nos últimos dois anos sem terem capacidade de “estancar” a pandemia.
Parti. Julgava seguir sozinho, mas afinal saí na companhia de dois recém conhecidos, Mykola e Nazar. O primeiro ofereceu-se para ser tradutor, porque desejava buscar três familiares. O segundo queria boleia para se alistar no exército e combater russos.
Percorremos em dois dias e meio a Europa. Espanha, França, Alemanha. Polónia, finalmente. Chegámos à vizinhança da Ucrânia. Fomos abordados pela polícia uma única vez, na fronteira francesa. Na Alemanha começámos a ver carros carregados, e algumas bandeiras ucranianas. Na Polónia, caravanas já organizadas.
Na fronteira Polónia-Ucrânia não vimos sinais de covid-19, mesmo se, antes da invasão russa, aquele país estava ainda sob um surto, com 1,5% da sua população considerada infectada, apenas 35% vacinada.
Aliás, se houver covid-19 por aqui, anda desmascarada! Não há máscaras em lado algum, nem certificados. Não há gente isolada nem de quarentena. Não há sintomas gripais nem gente doente.
Há “apenas” guerra, e desde que há guerra não há máscaras – gente destemida. Dizem-me que por aí, em Portugal, há muita gente temida pela possibilidade de a chegada de ucranianos fazer ressurgir a pandemia. Quer-se vacinar tudo e todos.
Pelo caminho, Mykola conseguira resgatar a família sem se encontrar com ela. O “guerrilheiro” Nazar ficou tão absorvido pela multidão que encontrou que esta lhe sugou as forças com pedidos de ajuda. Trocou a frente de fogo pelas chamas do humanismo.
Valeu-lhes, e valeu-me, o facto de serem portugueses de origem ucraniana; dominam as duas línguas na perfeição.
Durante os primeiros dias foram-nos chegando camiões carregados. As ofertas vindas de Portugal eram rapidamente guardadas em armazéns improvisados. Na fronteira, uma correria de camionetas e de carros, num vaivém. Gratuitamente, levam os refugiados de uma fronteira para a outra. No meio do caos, alguma ordem.
Do lado da Ucrânia, filas de quarenta quilómetros de espera, para passar. Maridos que vêem partir a mulher e os filhos, mulheres e crianças assustadas.
Somente as crianças aparentam felicidade. Há internet gratuita e fichas para carregar os telefones. Para muitos, isso é a ligação aos familiares, à vida. Há vida assim.
Poucos quilómetros depois da fronteira, nas entranhas da Ucrânia, encontramos uma rotina diferente. Lviv é, apesar de tudo, uma cidade onde reina a normalidade. O comércio funciona, as pessoas circulam, vão para o trabalho, às compras, passeiam. Uma rotina.
Mas essas são os habitantes. Para quem chega de outras cidades, como Kiev, fugindo mesmo da guerra, e pernoita em escolas e armazéns, aguarda-se apenas com ânsias a oportunidade de seguir para a fronteira.
As estradas ucranianas na região oeste estão fortemente ocupadas por militares em postos de controlo de poucos em poucos quilómetros. Militares que não falam inglês, de pouca simpatia, mesmo para quem vem fazer serviço humanitário. São necessários alguns minutos até que nos olhem com outros olhos. Qualquer um de nós pode ser um infiltrado…
Vídeos e fotografias são proibidos. Revistam tudo. Fazem um excelente trabalho.
Ao distribuir alguns mantimentos pelas escolas, conforme as necessidades de cada uma, fui recebendo outros pedidos, outras moradas. Gente para transportar. Cada uma mais perto de Kiev, cada vez com maior presença militar. Até agora, estão em falta super-guerrilheiras, modelos de perfeição, que nos chegam a Portugal pelas redes sociais.
Há gasóleo nas bombas, há gente que mantém rotinas. Em falta, mais ajuda humanitária. Mais meios, mais mãos para ajudar.
Depois de ganhar confiança com a população local, levam-nos aos seus pontos de encontro. Um deles é uma biblioteca transformada em fábrica de construção de redes para camuflar tanques. Ali, jovens, crianças e adultos cortam panos e vestem as redes, ao som de piano, guitarra. E cantos. Nunca vi biblioteca com tantos jovens. Há destes momentos deliciosos em tempos difíceis, onde se encontra a Humanidade.
Sabendo que me aproximo de Lviv, pedem-me para levar mantimentos, fazem-me entregas, abraçam-me. Por instantes esqueço os quatro graus negativos.
Recordo a minha família.
No Lviv International Media Center encontram-se os jornalistas que requisitam as credenciais, como eu, para o PÁGINA UM. Internet, computadores, casa de banho e bebidas quentes. Um luxo nestas paragens, e nestes tempos.
Para muitos enviados especiais, um lugar fantástico para apresentar directos, para copiar ou reescrever as notícias das agências internacionais. Estou grato a este centro, permitiu-me internet gratuita por instantes.
Entretanto, um mea culpa.
Cometo, neste texto, um pecado capital. Como jornalista, não soube distanciar-me do objeto da notícia. Estou, em simultâneo, a fazer trabalho humanitário. Envolvi-me demasiado para estar agora a escrever notícias “objectivas”.
E também não sei ainda dizer qual o sabor da morte. Mas sei dizer-vos que a vida é deliciosa. Mesmo aqui, na Ucrânia.