Existe uma ideia generalizada de que as andorinhas chegam com a Primavera. Ou melhor, de ser suposto chegarem com a Primavera. Pelo menos foi isso que aprendemos nos livros da escola. E se os livros da escola dizem que é assim, deve ser verdade, não é? Não, não é…
Desde que comecei a interessar-me pela observação de aves selvagens, achei especialmente interessante o fenómeno da migração. As aves, como é sabido, migram. Cada espécie tem o seu calendário próprio. E eu sempre gostei de ir vendo e registando as datas de chegada, de comparar e de encontrar padrões. Porque são os padrões, e não os acontecimentos isolados, que nos ajudam a compreender melhor o mundo que nos rodeia.
A chegada das andorinhas é um dos eventos mais conhecidos na migração das aves. Todavia, ao contrário do que muitas vezes é referido nos livros, em Portugal elas não chegam com a Primavera. Chegam muito antes…
Apercebi-me disto pela primeira vez quando, em meados da década de 1990, desenvolvi, com mais alguns ornitólogos portugueses, o “Atlas das Aves Invernantes do Baixo Alentejo”, durante três anos. Os trabalhos de campo decorriam em Dezembro e Janeiro. Cedo reparei que em Janeiro havia um claro aumento do número de andorinhas, em especial a partir do meio do mês. De então para cá fui recolhendo mais dados que confirmam este padrão: as andorinhas começam a chegar em força a partir do primeiro mês de cada ano.
Sempre que menciono estas ocorrências, logo aparece alguém a pontificar que “o tempo está todo trocado”, ou “as andorinhas já não vão embora” ou até “são os efeitos das alterações climáticas”, entre outras conclusões do mesmo teor. E todos os anos lá tenho de explicar que, apesar de tudo o que se costuma dizer em contrário, é normal aparecerem andorinhas em Janeiro. Sim, é normal e nem é sequer um fenómeno recente.
Não se pense, porém, que as chegadas se dão logo todas em Janeiro. Na verdade, o movimento de chegada das aves migradoras dá-se de forma gradual ao longo de vários meses. Ou seja, as primeiras andorinhas chegam de facto em Janeiro, mas ao longo dos meses seguintes vão chegando mais, juntando-se às que vieram primeiro.
No gráfico que aqui apresentamos pode-se observar a “frequência” das duas espécies mais comuns em Portugal. O aumento de começa logo em Janeiro e acentua-se muito em Fevereiro. Quando por fim chegamos ao equinócio da Primavera (linha vertical), já cá estão quase todas as andorinhas!
Há dias, a 18 de Março lembrei-me de consultar no mapa do eBird para saber como estava a decorrer este ano a chegada de andorinhas-dos-beirais ao país e à Europa.
O resultado encontra-se expresso no mapa mais abaixo, que mostra a representação acumulada de milhares de listas inseridas por observadores na plataforma eBird.
A andorinha-dos-beirais (Delichon urbicum) é uma espécie migradora, que inverna em África; em Dezembro está ausente; assim os registos apresentados deverão corresponder sobretudo a ‘chegadas’, isto é, a aves que regressaram recentemente dos quartéis de invernada.
A espécie nidifica em toda a Europa e não apenas no sul.
Olhando para o mapa, aquilo que vemos é que, à data de 18 de Março, a espécie já chegou a praticamente toda a Península Ibérica, assim como a diversos outros locais da orla do Mediterrâneo, como o sul de França, a Itália e a Grécia. No entanto, não há ainda qualquer registo mais para norte, nas zonas de clima temperado. Ou seja, estas andorinhas já chegaram em grande número aos locais de nidificação do sul europeu, mas ainda não há sinais delas a norte.
Chegados a este ponto, é necessário fazer a pergunta incontornável: então, mas isto não poderá ser tudo resultado das alterações climáticas?
Para responder a esta questão, vale a pena citar o Catálogo sistemático e analítico das aves de Portugal, da autoria de João Alves dos Reis Júnior, cuja primeira edição é de 1931, ou seja, há quase 100 anos: “A andorinha [das chaminés] chega ao sul de Portugal, geralmente, no mês de Janeiro; mas no norte só a temos observado em Fevereiro. A data em que mais cedo temos notado a sua presença nos arredores do Porto, foi a 5 de Fevereiro de 1906”.
Sobre a outra espécie, refere: “A andorinha dos beirais chega geralmente a Portugal um pouco mais tarde que a andorinha dos poços, mas nós já a temos observado também no norte durante o mês de Fevereiro.”
Numa época em que não se falava de alterações climáticas, e em que os observadores de aves escasseavam, este autor, natural do norte de Portugal, já sabia, e fazia questão de o salientar, que as andorinhas chegavam ao sul em Janeiro e ao norte em Fevereiro.
E diversos outros trabalhos publicados ao longo do século XX repetem esse padrão. Não se trata, pois, de uma novidade.
Claro que é possível que as alterações climáticas tenham alguma influência nas datas de chegada. Mas não é de modo algum claro que sejam o único ou sequer o principal factor a explicar o aparecimento de andorinhas em Janeiro.
Estas chegam cedo porque no sul da Europa, onde o clima é mediterrânico e a temperatura amena, a Primavera “começa mais cedo”, e elas já aí encontram condições para começarem a ocupar os seus territórios.
Em contrapartida, nas latitudes mais elevadas, as condições ainda são demasiado severas e as andorinhas que por lá nidificam “sabem” que ainda não é altura certa para migrar. Assim, no centro e no norte da Europa os locais de reprodução só são ocupados a partir de Maio, muito depois do equinócio.
Ornitólogo, escritor e engenheiro electrotécnico
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