Um novo parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) concede direito ao PÁGINA UM em conhecer dados brutos sobre as reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e o uso do remdesivir, o polémico antiviral usado em doentes-covid, desaconselhado pela Organização Mundial da Saúde mas “apadrinhado” por especialistas com ligações à farmacêutica Gilead. Infarmed não queria dar acesso, alegando que essa informação não se destina a “conhecimento público” e que pode haver “alarme social”.
Apesar das tentativas do presidente do Infarmed, Rui dos Santos Ivo, em convencer a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) de que os jornalistas são “não-especialistas” com “um elevado potencial para criar alarme social totalmente desnecessário e infundado”, esta entidade que regula os medicamentos terá mesmo de disponibilizar a base de dados dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19, bem como do fármaco remdesivir, um antiviral produzido pela farmacêutica Gilead.
O parecer da CADA, aprovado por unanimidade na passada semana, vem no seguimento de duas queixas independentes apresentadas pelo PÁGINA UM após a recusa tácita de pedidos de acesso ao Portal RAM no início de Dezembro.
No caso dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19, o PÁGINA UM não pretendia apenas consultar os habituais relatórios de farmacovigilância – cuja informação é “filtrada” e omite dados fundamentais –, mas sobretudo ter “acesso à base de dados [Portal RAM] e/ou a outros quaisquer documentos administrativos” que servissem para a elaboração daqueles relatórios públicos.
Além disso, pretendia-se conhecer, em maior detalhe, os efeitos adversos estratificados por idades e também os critérios para classificação do grau de gravidade desses efeitos. Saliente-se que se ignora ainda quais os critérios usados pelo Infarmed para validar, de forma inequívoca, a associação entre uma morte e a toma da vacina contra a covid-19.
Em relação ao remdesivir – um medicamento polémico que custou ao Estado português cerca de 20 milhões de euros, e cujos efeitos benéficos são considerados nulos, apesar do apoio de vários especialistas com ligações à Gilead –, o PÁGINA UM pretendia conhecer com detalhe todos os efeitos adversos reportados desde a sua utilização em doentes-covid a partir de Novembro de 2020.
Em carta enviada à CADA, no âmbito do processo aberto após a queixa do PÁGINA UM, o Infarmed alegou que, apesar de estarmos perante questões de Saúde Pública e de saúde individual, “o Portal RAM não serve afinal propósitos públicos”.
Rui dos Santos Ivo, actual presidente do Infarmed – que tem “saltitado”, no seu percurso profissional, entre a indústria farmacêutica e a regulação do sector dos medicamentos – alegou que os dados constantes no Portal RAM “não se destinam a ser disponibilizados para conhecimento público”, e que “o seu eventual fornecimento”, mesmo se fossem dados parciais, ocultando-se dados nominativos (que não existem, na realidade), redundaria num “risco de poderem ser analisados por não-especialistas”.
[O autor desta notícia, e director do PÁGINA UM, tem formação na área do tratamento de dados e é sócio da Associação Portuguesa de Epidemiologia]
Na opinião deste responsável – que considerará, certamente, que ninguém mais do que a indústria farmacêutica e os reguladores entenderão ou saberão tratar dados médicos e estatísticos –, como o acesso a estes dados por supostos “não-especialistas” teria “um elevado potencial para criar um alarme social totalmente desnecessário e infundado”, defendeu junto da CADA que não deveria ser fornecido o acesso.
A CADA, porém, considerou que “a informação solicitada” ao Infarmed pelo PÁGINA UM constitui mesmo “documentos administrativos”, e que, conforme fora feito o pedido, não era possível identificar pessoas. Com efeito, o PÁGINA UM solicitou, em concreto, que pretendia, tanto para as vacinas como para o remdesivir, uma “lista de reacções adversas (A, B, C, etc.) do indivíduo 1, 2, 3, etc. (…) de sexo determinado em datas elencadas após a toma de um medicamento concreto”. Ou seja, dados perfeitamente anonimizados.
No seu parecer, a CADA informa o Infarmed dum aspecto óbvio em democracia: “as entidades não podem limitar o acesso com base no receio de alguma deturpação que possa ser feita”.
E acrescenta ainda que “o interesse público no conhecimento de elementos que possam informar quanto à segurança da vacina [contra a covid-19] é, por conseguinte, manifesto”.
Nessa medida, a CADA salienta que o Infarmed deverá facultar o acesso à informação solicitada pelo PÁGINA UM, “independentemente do suporte em que se encontre (…), expurgada dos elementos que por si ou conjugadamente permitam relacionar os dados de saúde a pessoas concretas”.
Como a CADA considera, mesmo assim, que possa existir um volume de dados muito elevado – por exemplo, o último relatório do Infarmed sobre as reacções adversas das vacinas contra a covid-19, datado de 28 de Fevereiro passado, reporta a ocorrência de 22.927 reacções adversas –, o Infarmed tem a possibilidade de prorrogar o prazo “até ao máximo de dois meses”.
Contudo, do ponto de vista técnico não há justificação para tal, uma vez que o Portal RAM permite descarregar a informação em formato compatível para tratamento estatístico de forma imediata.
Na verdade, apenas uma razão política pode justificar o protelamento por parte do Infarmed. Ou uma recusa, o que levaria necessariamente a uma intimação junto do Tribunal Administrativo, mas que constituiria uma forte suspeita de algo de muito grave estar a ser escondido. Tanto no caso das vacinas como do remdesivir.