Vértebras

Da justiça do Burkina Faso e do Conselho Superior da Magistratura de Portugal

Vértebras

por Pedro Almeida Vieira // Março 23, 2022


Categoria: Opinião

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Não sei por que razão – talvez seja muito pela sonoridade do nome –, sempre que sou confrontado com algo chocante do ponto de vista do funcionamento de uma sociedade, surge-me de imediato o Burkina Faso na cabeça. Não me aparece tanto Ouagadougou, a sua capital, porque nunca consegui decorar este nome, e pronunciá-lo exige esforço suplementar.

Enfim, e surgiu-me esta manhã novamente o Burkina Faso na mente, e não por acaso: foi no exacto momento em que li um e-mail para mim enviado pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM) com um “despacho” da juíza secretária, de seu nome Ana Cristina Dias Chambel Matias.

Versava a magna questiúncula sobre se um cidadão de uma república constitucionalmente democrática – leia-se, Portugal – tem o direito de aceder a documentos administrativos na posse daquela entidade que superintende os juízes.

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Neste caso, documentos relacionados com a Operação Marquês, o qual já merecera um parecer favorável da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Pensava que era um e-mail para me informar que podia ir consultar finalmente os documentos.

Não era. Era para me informar de que, apesar do parecer da CADA, o CSM não os quer ceder. Que eu vá, diz-me o CSM, “intentar respetiva acção especial no Tribunal Administrativo, cujos juízes são avaliados pelo próprio CSM…

Deu-me, entretanto, um vaipe e resolvi que deveria ser mais justo com o Burkina Faso, e corri a consultar o Índice do World Justice Project do Estado de Direito.

E penitencio-me agora pela injustiça da associação.

O Burkina Faso não é o pior país do Mundo em matéria de Estado de Direito. Longe disso.

No que diz respeito ao indicador das restrições legais do Poder do Estado, o Burkina Faso está na posição 61 em 139 países. O pior é a Venezuela.

Sobre a ausência de corrupção, o Burkina Faso surge também na posição 61. O pior é a República Democrática do Congo.

Em relação à transparência e abertura do Governo aos cidadãos, o Burkina Faso ocupa a posição 80. O pior é o Egipto.

Relativamente à consagração de direitos fundamentais, o Burkina Faso está no lugar 69. O pior é o Irão.

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No que concerne à ordem e segurança, o Burkina Faso está na 128º posição. O pior é o Afeganistão.

Em relação à aplicação das leis e regulação, o Burkina Faso encontra-se no lugar 74. O pior é a Venezuela.

Na aplicação da justiça civil, o Burkina Faso ocupa o lugar 100. O pior é o Camboja.

E, por fim, na aplicação de justiça criminal, o Burkina Faso situa-se na posição 58. O pior é a Venezuela.

O Burkina Faso é, por isso, um péssimo exemplo para eu utilizar. No global, no Índice do World Justice Project do Estado de Direito, está em 75º lugar. Tenho de me “corrigir”.

Mas Portugal, país para onde trabalham as pessoas que integram o CSM, também não é exemplo para ninguém.

Não por causa daquilo que diz o World Justice Project, que coloca Portugal na 26ª posição no seu índice global, e mostra-nos em situação razoável nos diversos indicadores, entre a posição 16 (restrições legais do Poder do Estado) e a 49 (ordem e segurança).

Na verdade, estes índices e indicadores dizem-nos pouco, na maior parte dos casos. São giros para fazer rankings e para comparações globais, muito apreciados por políticos (quando são bem classificados) e adorados pelos jornalistas.

Na prática quotidiana, são os pequenos detalhes que interessam, em muitos casos daqueles que não enformam qualquer indicador ou índice. E são, afinal, esses pormenores que mostram, por vezes, que em matérias essenciais Portugal e o Burkina Faso não são assim tão distintos, que o nosso CSM não será assim tão diferente da entidade homóloga daquele país subsariana.

Com efeito, quando se vê o nosso CSM – atenção, estamos a falar de uma entidade como o CSM, um dos pilares da Democracia –, em apenas duas páginas:

a) menosprezar um parecer de uma entidade presidida por um juiz conselheiro – Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos –, destacando que, enfim não os têm de cumprir porque “não são vinculativos para a entidade administrativa”;

b) declarar que se deve atribuir “confidencialidade ao processo disciplinar” sobre a entrega da Operação Marquês ao juiz Carlos Alexandre em 2014, para assim esconder os detalhes e pressupostos desse arquivamento;

c) defender que um jornalista não deve ter acesso a determinados documentos, socorrendo-se a interpretação enviesada e absurda do regime de protecção de dados;

d) e, impor que um jornalista tem de esclarecer previamente “qual a finalidade do acesso e da recolha de tais documentos” para que, depois disso, o CSM possa ponderar se concede ou não os documentos;

então, podemos concluir que Portugal pode não ser o Burkina Faso, mas está longe de ser uma Democracia madura.

Pelo menos enquanto o CSM tiver pessoas com esta mentalidade anti-democrática.

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