SAÚDE POR ARAMES

Infecções respiratórias em alta e urgências entupidas, mas DGS nada diz porque não é covid-19

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por Pedro Almeida Vieira // Março 23, 2022


Categoria: Exame

Temas: Saúde

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A “normalidade” sanitária quase reapareceu com a Guerra da Ucrânia e um boletim semanal minimalistas sobre a covid-19. Mas essa “normalidade” está a significar, basicamente, o retorno às urgências entupidas com o Governo e as autoridades de saúde a assobiar para o ar. Os valores totais da procura por cuidados médicos nos hospitais estão em valores máximos dos últimos seis anos. E não são só falsas urgências, porque os casos graves estão em alta. Os indicadores mostram, aliás, que a saúde geral dos portugueses anda presa por arames.


Tempos de espera superiores a seis horas. Este era o cenário ontem à noite das urgências nos hospitais de Almada e Vila Franca de Xira para doentes de menor gravidade. Este tem sido o cenário cada vez mais habitual nos hospitais portugueses que têm estado a retomam à “normalidade” pré-pandemia, paradoxalmente mais caótica do que durante a pandemia.

Com os casos de covid-19 a desaparecerem do espaço público e mediático – com a guerra da Ucrânia a dominar a comunicação social e a Direcção-Geral da Saúde (DGS) a limitar a informação a um boletim semanal minimalista –, os portugueses aparentam estar a “redescobrir” que estão doentes. E que existem hospitais.

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Resultado: na última semana, uma “avalanche” de idas às urgências está a entupir muitos hospitais que estão também a ser invadidos por doentes com infecções não-covid, incluindo casos de gripe.

De acordo com o levantamento realizado pelo PÁGINA UM, na semana de 15 a 21 de Março deste ano registaram-se 131.507 visitas às urgências hospitalares, uma média diária próxima dos 19 mil pessoas. No dia 21 ultrapassou-se, pela primeira vez desde a chegada do SARS-CoV-2 ao território português, a fasquia dos 20 mil episódios de urgência.

Na verdade, embora as autoridades de Saúde tenham sempre tentado criar uma ideia contrária, o período pandémico acabou por retirar bastante pressão hospitalar, sobretudo nos serviços de urgência. A média diária em 2020 – logo no início da pandemia – e em 2021 na semana de 15 a 21 de Março foi, respectivamente, de 10.802 e 7.052 doentes.

Somatório dos episódios de urgências no período 15-21 de Março entre 2017 e 2022. Fonte: SNS

Nos três anos anteriores à pandemia, para o período referido, a afluência era muito maior do que em 2020 e 2021, mas bastante inferior à do presente ano. Em comparação entre 2017 e 2019, o actual fluxo de idas às urgências regista um acréscimo que ronda os 12%.

Mas existe um outro factor de preocupação. Ao invés de se observar uma tendência decrescente na procura de ajuda hospitalar com a entrada da Primavera, este ano observa-se uma tendência em contra-ciclo.

Poder-se-ia pensar que advém de uma maior sensação de segurança para se correr aos hospitais, derivada da perda de mediatismo em redor da covid-19, mas existem outros sinais, a começar pelo ressurgimento em força de outras infecções respiratórias, incluindo a gripe. O vírus da influenza esteve, aliás, “incógnito” durante mais de um ano, a tal ponto que uma gripe se tornou quase doença rara no SNS.

Segundo os dados de monitorização do Serviço Nacional de Saúde (SNS), desde 2017, a recente semana de 15-21 de Março foi aquela com maior número de registos de infecções respiratórias não-gripais ou não-covid: 7.613. São valores acima daqueles que se encontram antes da pandemia, e supera largamente os casos contabilizados no período homólogo de 2020 e 2021: no ano passado registaram-se apenas 1.135 casos; em 2020 somente 3.788. A gripe, por sua vez, foi identificada em 602 casos que chegaram ao SNS; no ano passado, em período homólogo, foi apenas um.

Em suma, aparentemente desapareceu o SARS-Cov-2, mas reaparecerem todos os outros vírus e também bactérias que afligiam antes os seres humanos. Por onde andavam, a Ciência tratará de responder.

Somatório dos casos registados de gripe e de outras infecções respiratórias no período 15-21 de Março entre 2017 e 2022. Fonte: SNS

Certo é que, sobre esta matéria, a DGS mantém-se em silêncio, e não se encontra qualquer despacho ou informação relevante no seu site sobre quais os agentes infecciosos responsáveis. Os dados do SNS revelam apenas que a gripe reapareceu, após dois anos “escondida”: entre 15 e 21 de Março último contabilizaram-se 602 casos de gripe, valores mesmo assim em linha expectável com o esperado em anos anteriores ao surgimento do SARS-CoV-2.

Não se julgue, porém, que a subida nos números de urgência se deva sobretudo à crónica postura dos portugueses em recorrerem aos hospitais por qualquer motivo. Sendo certo que apenas 2,5% das idas às urgências na semana de 15-21 de Março de 2022 resultaram em internamento, o número de casos mais graves (emergência, muito urgente e urgente) é bastante elevado.

De facto, considerando a Triagem de Manchester, no período em análise deste ano contabilizaram-se 62.445 doentes triados nas urgências, dos quais 376 com pulseira vermelha (emergência), 11.069 com pulseira laranja (muito urgente) e 51.000 com pulseira amarela (urgente). Em termos absolutos, estes valores são os mais elevados face ao período homólogo entre 2017 e 2021.

Indicadores de urgência hospitalar no período de 15-21 de Março entre 2017 e 2022. Fonte: SNS

Este cenário indicia sobretudo que o estado de saúde geral dos portugueses é deplorável no “rescaldo” da pandemia. Recorde-se que nos últimos dois anos registou-se um excesso de mortalidade da ordem dos 27 mil óbitos, sendo Portugal o país da Europa Ocidental com saldo mais desfavorável em comparação com os cinco anos anteriores à pandemia.

Ora, aparentemente, essa sangria populacional, que “sacrificou” os mais vulneráveis, afinal nem trouxe qualquer “robustecimento” na saúde geral. Pelo contrário, observando-se agora mais pessoas a necessitarem de atendimento médico urgente – e com menos população idosa –, uma triste conclusão terá de se retirar: a gestão da pandemia e a estratégia governamental de suspender muitos serviços médicos nos últimos dois anos deixou muitas mazelas aos “sobreviventes”.

Uma população com a saúde “presa por arames”. As urgências, agora, que o digam.

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