Por causa de três artigos de investigação, a Sociedade Portuguesa de Pneumologia quer que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) censure e castigue o PÁGINA UM, alegando que houve pessoas que recusaram vacinar-se por causa de notícias que abordaram essa associação privada e as suas ligações com a indústria farmacêutica. Conheça os termos da queixa – e o texto integral – e mais alguns detalhes sobre os conflitos de interesses desta associação privada de pneumologistas.
A Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP) considera que os artigos jornalísticos do PÁGINA UM que abordaram as suas ligações com a indústria farmacêutica “acarretou consequências para a saúde pública”.
Em causa está uma investigação jornalística, constituída até agora por três peças, sobretudo baseadas em informação pública do Infarmed, publicadas sob os títulos “Sociedade Portuguesa de Pneumologia teve ano de ouro em receitas de farmacêuticas com 370 mil euros da Pfizer”, em 13 de Janeiro, “Farmacêuticas da covid-19 e gripe enchem cofres da Sociedade Portuguesa de Pneumologia”, em 16 de Fevereiro, e “Um congresso à pala: saiba quais os pneumologistas que receberam das farmacêuticas, e quanto receberam”, em 17 de Fevereiro.
Numa queixa apresentada junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) por esta associação privada de médicos daquela especialidade, o seu presidente, António Morais diz mesmo que “já existem relatos de médicos pneumologistas que foram confrontados por pacientes com essas publicações e outros até que recusaram vacinar-se apenas por estarem convictos de que o ato médico em causa não era necessário e apenas resultava de interesse pessoal do médico e na sua realização”.
Na queixa à ERC, António Morais, que é pneumologista no Hospital de São João e também consultor da Direcção-Geral da Saúde, além de trabalhar ainda na Trofa Saúde, não apresenta testemunhas que validem esta informação, nem informa a que vacinas se refere.
Na fundamentação da queixa contra o PÁGINA UM, a SPP não aponta qualquer erro, inexactidão ou falsidade sobre as parcerias comerciais e financeiras entre aquela associação privada de médicos e as farmacêuticas, apenas contestando as palavras usadas, as interpretações e o enfoque da investigação. Ou seja, questões no âmbito da liberdade de imprensa.
Recorde-se que o PÁGINA UM revelou que só em 2021 a SPP recebeu 1,3 milhões de euros do sector farmacêutico, com destaque para uma campanha financiada pela Pfizer no valor de 370 mil euros de promoção da vacina pneumocócica. A Pfizer é, de longe, a principal fornecedora desta vacina em Portugal, comercializando-a sob a marca Prevenar.
Por outro lado, o PÁGINA UM revelou ainda que a SPP recebeu no último quinquénio mais de 4,3 milhões de euros da indústria farmacêutica com o recorde a ser batido no ano passado, com destaque para a Boehringer Ingelheim, Novartis, BIAL, Pfizer, GlaxoSmithKline, A. Menarini e AstraZeneca.
Também desvendou os meandros do último congresso de pneumologia, em Novembro passado, salientando que a SPP recebeu patrocínios de farmacêuticas no valor de 562.381,60 euros. Além disso, revelou que 14 empresas deste sector pagaram as inscrições ou as participações em eventos de quase quatro centenas de pneumologistas, tendo sido divulgados os nomes que constam na Plataforma da Transparência e Publicidade do Infarmed.
Apesar dos dados factuais, António Morais cita, na queixa à ERC, várias passagens dos artigos do PÁGINA UM, para concluir que estes “ofendem o direito fundamental à imagem da SPP e dos seus associados, pois insinuam que os médicos pneumologistas e a SPP se encontram ao serviço da indústria farmacêutica”.
O presidente da SPP considera que o PÁGINA UM quis “induzir o leitor a uma interpretação dos factos que não só não corresponde à verdade, como resulta de uma visão deturpada e pessoal do próprio jornalista”.
No texto enviado à ERC em 11 de Março, o presidente da SPP relembra que se está perante uma “associação sem fins lucrativos” – algo que, convém relembrar, não significa que esteja impedida de ter lucro, havendo apenas a obrigação de ser investido em iniciativas que beneficiem os seus associados, mesmo até monetariamente – e que “não faz publicidade ou comércio de produtos farmacêuticos”. E acrescenta que a SPP recolhe “patrocínios e donativos para concretizar os seus objectivos estatutários, no escrupuloso cumprimento das normas em vigor”.
Convém referir que a SPP não esconde, pelo contrário, as suas fortes e permanentes ligações ao sector farmacêutico, tanto assim que o seu próprio site tem o apoio expresso da Medinfar, Takeda e BIAL.
Além disso, nos congressos da SPP, as farmacêuticas escolhem especificamente as sessões que querem patrocinar, ou seja, optam por estarem associadas apenas aos temas em discussão onde têm interesses comerciais relevantes. E até pagam directamente aos especialistas, todos influentes e conceituados pneumologistas, que discursam ou moderam mesas.
A título de exemplo, no último congresso, a BIAL – que comercializa medicamentos para a asma brônquica e a doença pulmonar obstructiva crónica (DPOC) – patrocinou expressamente a sessão “Treatable traits bringing precision medicine to the treatment of respiratory patients”. A sessão foi moderada por Carlos Robalo Cordeiro que, expressamente, recebeu 1.230 euros da BIAL apenas por fazer essa tarefa. Igual valor recebeu a co-moderadora Ana Sofia Oliveira, que além disso tem uma forte ligação a esta farmacêutica portuguesa: só no ano passado recebeu 22.231 euros por palestras e como consultora.
A Pfizer – que vende vacinas pneumocócicas – patrocinou uma sessão em que discursaram, entre outros, os médicos Melo Cristino e Filipe Froes. O primeiro, especialista em Patologia Clínica, recebeu mesmo um apoio financeiro (1.000 euros) da Pfizer para fazer uma apresentação neste congresso. Já o pneumologista Filipe Froes encaixou 1.160 euros, mas para este congresso foi pago pela Sanofi, que comercializa vacinas antigripais.
No entanto, a Pfizer e muitas outras farmacêuticas, são “clientes habituais” deste mediático pneumologista, que desde 2013 recebeu mais de 380 mil euros desta indústria. Pela Pfizer recebeu 134.574 euros até final do ano passado.
A AstraZeneca – que, por exemplo, teve um novo medicamento (Tagrisso) para o tratamento do cancro do pulmão – patrocinou, nem mais, a sessão “Cancro Pulmão”. A Nippon Gases patrocinou a sessão da Comissão de Trabalho de Reabilitação Respiratória. E por aí fora. Houve cerca de duas dezenas e meias de sessões patrocinadas. Houve outras sem patrocínio, obviamente aquelas que não suscitaram interesse comercial das farmacêuticas.
Apesar destas evidências – e o PÁGINA UM nem sequer escalpelizou todas as relações entre pneumologistas e indústria farmacêutica –, António Morais lamenta que numa das notícias se tenha publicado uma lista nominativa – que, repita-se, é pública – dos médicos que tiveram a sua inscrição ou participação paga por farmacêuticas, considerando-a “completamente desnecessária”.
Segundo este responsável, a notícia do PÁGINA UM, “visa[va] apenas lançar a suspeita sobre todos e cada um deles quanto à sua falta de isenção e independência”.
Saliente-se que o PÁGINA UM decidiu listar aqueles médicos para que, eles próprios e os demais leitores, possam reflictir se existem ou não questões éticas a considerar em situações de apoio de farmacêuticas na inscrição e participação de médicos em congressos daquela natureza.
Invocando que “vivemos numa era em que proliferam a desinformação e as fake news”, António Morais refere ainda que o “tipo de jornalismo” do PÁGINA UM “põe em causa a credibilidade científica de uma sociedade que, durante o período da pandemia, se prestou para prestar verdadeiro serviço público, disponibilizando informação séria, tendo como base as evidências científicas mais atuais”.
Recorde-se que o PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação social que tem pressionado a Direcção-Geral da Saúde a prestar informação sobre a pandemia, tendo divulgado no seu site em primeira-mão, após a obtenção desses documentos, o conteúdo integral dos pareceres da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC).
Foi também o PÁGINA UM o único órgão de comunicação social que recuperou, e disponibilizou no seu site, os relatórios da Task Force das Ciências Comportamentais que em Janeiro a DGS decidiu retirar do seu site por via da polémica causada pelo seu conteúdo.
E tem sido o PÁGINA UM o único órgão de comunicação social que tem revelado muitos dos aspectos escondidos sobre a pandemia, e também, noutra linha, que tem denunciado as ligações comerciais entre algumas sociedades médicas e a indústria farmacêutica.
Destaque-se também que para a investigação do PÁGINA UM sobre a SPP (e outras sociedades médicas) foram enviados dois e-mails a António Morais em 19 de Outubro e 1 de Novembro passado, solicitando um conjunto de informações e esclarecimentos.
Nessas missivas questionava-se a existência de um código de ética perante a indústria farmacêutica, “designadamente ao nível de recebimento de verbas pagas por aquelas por participação em palestras, conselhos consultivos, etc.”
Pediu-se também a opinião sobre se considerava “necessário a existência de uma maior regulação especial, além daquela já em vigor, para regular as actividades e a independência das sociedades e associação de médicos”. E solicitava-se também o Relatório e Contas entre 2018 e 2020. António Morais e a SPP não responderam.
Tem sido esta a visão de jornalismo do PÁGINA UM que a SPP e o seu presidente, António Morais, consideram agora “suficientemente grave e merecedora de atuação da ERC, ao abrigo dos arts. 7º e 8º da Lei 53/2005”. Saliente-se que é invocado uma norma das atribuições da ERC, extremamente importante: “assegurar o livre exercício do direito à informação e à liberdade de imprensa”.
NOTA DA DIRECÇÃO: O PÁGINA UM divulgará, e abordará do ponto de vista noticioso, complementando com mais informação relevante, as queixas que sobre si forem endereçadas à ERC, divulgando o seu teor integral, mesmo antes da conclusão do processo, sempre que considerar relevante, e de acordo com a sua linha editorial.
No caso em apreço, uma vez que a ERC não indica em concreto quais são as normas da Lei da Imprensa que o PÁGINA UM terá alegadamente violado, serão pedidos mais esclarecimentos. Em todo o caso o ofício da ERC avisa que “a falta de apresentação de oposição [pelo PÁGINA UM] implica a confissão dos factos alegados pelo queixoso, com consequente proferimento de decisão sumária pelo conselho regulador, sem prévia realização de audiência de conciliação”.
O PÁGINA UM considera que a queixa da SPP tem um claro objectivo de pressionar e condicionar a liberdade de um órgão de comunicação social independente, uma vez que nem sequer se aponta um erro factual. Nem uma vírgula mal posta, mesmo se, nesse caso, até deverá haver alguma, certamente.