ANÁLISE P1

Desde a II Guerra Mundial já morreram em conflitos armados mais pessoas do que a população portuguesa. E como está a ser este ano?

closeup photography of bong mask

por Pedro Almeida Vieira e Bernardo Almeida // Março 27, 2022


Categoria: Exame

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O PÁGINA UM foi ver como anda o Mundo em mavorcismos desde 1946, um ano após o fim da II Guerra Mundial. O saldo não é nada favorável: 10.477.718 vítimas mortais. Em 2020, segundo as Nações Unidas e o site Our World in Data, ficaram acima de 49 mil. Mas há mais base de dados relevantes que mostram que nem só com guerras formais e televisionadas se mata e morre. O PÁGINA UM foi à procura de informação, e apresenta uma análise, não para relativizar a tragédia da Ucrânia, mas sim para relembrar que o Mundo não pode esquecer outros mundos em contínua, trágica e flagelante sangria de vidas.


Trinta e um são os dias daquela que é conhecida por Guerra da Ucrânia. Foram percorridos, todos estes dias, por incessantes notícias de bombardeamentos, baixas, refugiados, que já são mais de 3,5 milhões, manifestações, sanções sem fim.

Estão a ser feitas recolhas de alimentos, campanhas de ajuda financeira e de acolhimento temporário um pouco por todo o Ocidente, incluindo também, massivamente, em Portugal.

Se a perspectivarmos através dos relatos da imprensa, esta Guerra parece só agora se ter iniciado naquela região, e que em redor, no Mundo, nada mais existe do que paz, uma serena paz.

Infelizmente, nada estará mais longe da verdade. Os “deuses” da Guerra não pararam, nem foram todos agora a caminho da Ucrânia.

green helicopter near big fire

Andam por aí, como sempre andaram por todo o lado. Quem acha que nunca se viu coisa assim, tem andado distraído. Nunca pararam desde a denominada II Guerra dita Mundial. E isso de ter havido uma I e uma II é convenção: conflitos envolvendo vários países, nos diversos continentes, ocorreram antes do século XX, por vezes durante décadas.

E mundiais foram, certamente, apesar de usarem tecnologia que não matava tanto em massa como os conflitos em tempos modernos. Outras histórias.

Enfim, certo sim é que, desde 1946 até 2020, segundo dados compilados pelo Our World in Data e validados pelas Nações Unidas, foram mortas 10.477.717 pessoas em conflitos armados, mais do que toda a actual população portuguesa, que contou, nos Censos do ano passado, 10.344.802 vidas.

Embora a mortandade causada pelos diversos conflitos regionais tenham apresentado uma tendência decrescente na década de 50 do século passado – entre 1946 e 1950 ainda morreram mais de 2,2 milhões de pessoas em cenário de guerra –, os anos de 60, 70 e 80 registaram um crescimento no número de vítimas, muito por via das guerras no continente asiático e no Médio Oriente, com particular destaque para a Guerra Irão-Iraque.

Evolução das mortes em guerras no Mundo desde 1946. Fonte: Our World in Data.

A década de 90 foi a mais pacífica a nível mundial na segunda metade do século XX – “apenas” 483.845 vítimas mortais –, embora tenha sido a mais sangrenta na Europa, com 55.422 mortes, quase todas no decurso do desmembramento da antiga Jugoslávia. Só em 1991 caíram às mãos da guerra 20.337 europeus, o valor anual mais elevado desde 1950.

No entanto, se se descontar (e nem se devia) os conflitos nos países formados pelas antigas repúblicas soviéticas, sobretudo a Ucrânia, a Europa tem estado imune a guerras no presente milénio. E se consideramos a Europa Ocidental, e não havendo aí disputas bélicas desde a II Guerra Mundial, pode-se dizer, com segurança, que se está a viver o período mais longo de paz contínua da sua longa História.

Evolução das mortes em guerras na Europa desde 1946. Fonte: Our World in Data.

A primeira década do século XXI parecia ser de esperança para uma Humanidade finalmente mais fraterna, pois mostrou-se a menos mortífera em cenários de guerras a nível mundial desde 1949. Mesmo assim foram assassinadas 218.831 pessoas em conflitos armados.

Foi sol de pouca dura. Quem julgasse que o novo milénio seria de clarividência e de harmonia entre povos, desenganou-se com a segunda década. Entre 2011 e 2020 retomaram as guerras, sobretudo no Médio Oriente, e em especial na Síria e Iémen, que mataram mais de 483 mil pessoas.

A Ásia (excluindo o Médio Oriente e incluindo a Oceânia) tem sido, contudo, o continente mais massacrado por conflitos armados desde o final da II Guerra Mundial: cerca de 6,4 milhões de vítimas mortais. Grande parte foram provenientes de sangrentas guerras entre as décadas de 40 e 80 do século passado, com destaque para as ocorridas na região da Indochina (Camboja e Vietname).

Evolução das mortes em guerras na Ásia e Oceânia desde 1946. Fonte: Our World in Data.

Se se acrescentar ao continente asiático o Médio Oriente, são mais 1,65 milhões de vítimas após a II Guerra Mundial.

A denominada Guerra da Independência de Israel, que levou a um conflito com diversos países árabes em 1948, e a um êxodo de palestinianos, causou mais de 20 mil mortes.

Este conflito manteve-se omnipresente nesta região a partir daquele ano, mas juntaram-se nos anos 6o as guerras curdo-iraquianas e mais conflitos na região do Iémen do Norte.

Na década de 70, o conflito entre a Turquia e rebeldes curdos, que pretendiam a autonomia da região do Curdistão em 1977, foi um dos mais sangrentos nesta região.

Mesmo assim nada parecido, em dimensão com a longa e fratricida guerra entre Irão e Iraque, iniciada em 1980 e apenas terminada oito anos mais tarde, com um saldo superior a um milhão de mortos. Por fim, já no presente milénio, a Primavera Árabe descambaria, a partir de 2010, em sangrentas guerras civis sobretudo no Síria, Iémen e Iraque.

Evolução das mortes em guerras no Médio Oriente desde 1946. Fonte: Our World in Data.

A África, um continente tradicionalmente sangrento, muito por via das guerras tribais e da influência por vezes nefasta das potências ocidentais. Algumas fizeram correr sangue antes de perderem as suas antigas colónias. Foi o caso de Portugal. A Guerra Colonial, iniciada em 1961 e terminada apenas em 1975, causou a morte a cerca de 10.500 soldados portugueses e ainda de mais de 45 mil civis e agentes de movimentos independentistas africanos.

Na segunda metade do século XX, poucos foram os anos em que morreram menos de 20 mil pessoas em África por causa de conflitos armados, havendo dois anos (1960 e 1961) em que se superou a fasquia das 130 mil vítimas. E mais 13 anos a ultrapassarem os 40 mil mortos.

Evolução das mortes em guerras em África desde 1946. Fonte: Our World in Data.

A segunda década do presente século foi mais “amena” – se considerarmos o passado –, com valores anuais de vítimas mortais a rondarem as 10 mil.

Neste continente, e desde 1946, poucos foram os países sem derramamento de sangue por causa de guerras, mas as mais mortíferas ocorreram na Eritreia, Nigéria, Ruanda, Sudão (e, mais tarde, no Sudão do Sul) e Uganda, e mesmo também em Angola e Moçambique.

Inúmeros são os conflitos ainda activos nos quatros cantos do Mundo, mesmo se nos últimos dois anos, também por força da omnipresença da pandemia nos media, pouco deles se fala.

Todos os dias morrem pessoas, outras se estropiam, destroem-se infraestruturas, ferem-se povos com marcas que não saram.

E não é uma opinião subjectiva; é factual. É um relatório das Nações Unidas que o diz, e é de Dezembro passado.

Evolução das mortes em guerras nas Américas desde 1946. Fonte: Our World in Data.

Vejamo-las, uma a uma, essas zonas de Guerra, segundo o organismo que tem António Guterres como secretário-geral.

Na Síria, um conflito armado que dura, há mais de 11 anos, já morreram pelo menos 350 mil pessoas, e não tem um fim à vista, tantos são já os grupos beligerantes.

Este país do Médio Oriente enfrenta também um colapso económico, por má gestão e práticas corruptas. E os efeitos da pandemia desde 2020 não ajudaram.

No Médio Oriente, a guerra do Iémen constitui também um dos maiores dramas humanitários numa região pobre onde mais de 14 milhões de habitantes necessitam de ajuda alimentar.

Com as suas raízes na denominada Primavera árabe, a aparição da Al-Qaeda na região e de movimentos separatistas no sul, além de conflitos entre hutis e sunitas, levaram ao recrudescimento da guerra, com a envolvência da Arábia Saudita.

Desde 2015, segundo as Nações Unidas, morreram mais de 6.800 civis e ficaram feridos pelo menos 10.700 pessoas. Estes conflitos criaram já mais de três milhões de deslocados e refugiados.

No Afeganistão, após a retomada do poder pelos talibans e a saída das tropas internacionais no ano passado, os conflitos persistem. Na primeira metade de 2021 morreram 1.659 civis e ficaram feridas cerca de 3.200, um aumento de quase 50% face ao ano anterior.

As principais vítimas foram as mulheres e as crianças. No entanto, os “rios de sangue” nesta região asiática marcam um trágico quotidiano. Desde 2009, todos os anos o número de vítimas mortais nunca desceu abaixo do milhar, e em vários anos se registam mais de cinco mil feridos.

three men and one woman soldiers standing on rock during daytime

Na Etiópia, a região de Tigray, na parte norte deste país africano, tem sido o centro de confrontos entre as tropas governamentais e as forças regionais da Frente de Libertação do Povo (TPLF) daquela área a norte do país africano.

De acordo com as Nações Unidas, mais de 350 mil pessoas encontram-se em risco extremo de fome, os valores mais elevados registados na última década num só país. Além disto, ainda há mais 5,5 milhões de pessoas nas regiões vizinhas de Amhara e Afar que enfrentam sérios riscos de insegurança alimentar.

Em Myanmar, antiga Birmânia, no seguimento de novo golpe de Estado em Fevereiro do ano passado, a perseguição aos dissidentes resultou numa onda de violência que, em conjunto com o impacto da pandemia, aumentou os níveis de pobreza, que já atinge mais de 25 milhões de pessoas. Ou seja, quase metade da população daquele país.

No Mali, um outro golpe de Estado, este em 2020, tem tido consequências mesmo para os Capacetes Azuis. Segundo as Nações Unidas, no espaço de um ano morreram já mais de duas centenas dos seus “pacificadores”.

Os conflitos mataram quase 1.500 pessoas só em 2020, e causou já a fuga de mais de 400 mil civis, além da dependência de ajuda humanitária de pelo menos 4,7 milhões de habitantes.

No presente ano, os conflitos continuam bem activos neste país africano. Mais de uma centena de civis foram mortos nos últimos meses em ataques do exército maliano e de grupos ligados à Al-Qaeda e ao Daesh, de acordo com um relatório da Human Rights Watch da passada semana.

Esta organização de direitos humanos acusou mesmo soldados governamentais de terem matado pelo menos 71 pessoas desde Dezembro passado.

Além destes conflitos, as Nações Unidas alertam ainda para a existência de zonas de conflito latente, que pode redundar em sangue derramado a qualquer momento.

São os casos do Burkina Faso – onde, entre Junho e Agosto do ano passado, morreram 212 pessoas –, dos Camarões – um país com tensão constante entre separatistas e as forças armadas do Estado –, da República Central Africana – que nunca se pacificou desde as eleições em 2020 –, a República Democrata do Congo, o Haiti, o Iraque, o Níger, a Nigéria, a Somália e o Sudão. E, claro, o sempre presente, mas simultaneamente esquecido, conflito entre Israel e Palestina.

Mas não são apenas os conflitos bélicos “formais” que causam vítimas. De acordo com o Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED), um organismo internacional de investigadores liderado por Clionadh Raleigh, professora da Universidade de Sussex, a Ucrânia está longe de ser o único país pouco seguro na actualidade.

Desde o início do ano, até 18 de Março, este projecto de recolha de dados sobre diversos géneros de violência (conflitos armados, violência contra civis, explosões e outra violência remota, revoltas e protestos, etc.) reportou 3.281 eventos neste país europeu invadido pela Rússia. E já contabilizou um total de 2.318 vítimas mortais.

Estes dados serão ainda provisórios e, certamente, sujeitos a actualizações. A Guerra da Ucrânia tem sido também uma “batalha” de informação (e contra-informação) não havendo sequer um balanço suficientemente independente, quer da parte ucraniana quer russa, que garanta fiabilidade das vítimas militares e civis.

Contudo, seguindo os dados da ACLED, apesar de liderar o número de eventos, a Ucrânia não é o país que que apresenta mais mortes desde o início do ano. Ocupa “apenas” a terceira posição.

O primeiro lugar, o topo de um lamentável pódio, é de Myanmar, com 4.777 mortes causadas em 3.801 eventos. Segue-se o Iémen com 4.218 mortes em 1.929 eventos contabilizados.

Com mais de um milhar estão mais cinco países, dois dos quais não se encontram oficialmente em guerra, mas em estado de violência extrema endémica: Brasil e México. No primeiro caso, o ACLED já contabilizou 1.169 mortes resultantes de 2.086 eventos, enquanto no segundo foram reportadas 1.635 vítimas mortais em 3.055 eventos.

Os outros países acima daquela tenebrosa fasquia são países em guerra: República Democrática do Congo (1.267 mortes em 723 eventos), Síria (1.199 mortes em 1.994 eventos) e Somália (1.047 mortes em 574 eventos).

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Isto apenas em pouco mais de dois meses e meio.

Mas que sucedeu durante os dois anos da pandemia, em 2020 e 2021? Pois bem, em 24 completos meses, o ACLEAD contabiliza 262 mortos na Ucrânia, resultantes de 15.904 eventos registados sobretudo na região de Donbass.

E depois regista também oito países com mais de 10 mil mortes de pessoas vitimadas por violência em conflitos, a saber: Afeganistão (73.199), Iémen (38.146), Nigéria (17.671), México (16.704), Síria (14.083), República Democrática do Congo (11.723), Myanmar (11.365) e Brasil (10.528). Em dois anos apenas.

Um segundo de silêncio por todas estas vidas perdidas.

A emissão em directo da Ucrânia, 24 horas non stop, segue nos outros 86.399 segundos que ainda restam num dia. E nos seguintes. Segundos, horas e dias.

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