Sempre que vou a casa do meu pai, passo os olhos pela porta amolgada do correio. Sinais de outros tempos em que ainda se escreviam cartas à mão e um teenager, ansioso, dobrava a lata para não ter de esperar pela chave, que chegaria no bolso de um adulto lá para o fim do dia.
Hoje a rotina é consideravelmente diferente. Já ninguém escreve algo que mereça uma ida ao correio, e o entulho que por lá se acumula, na caixa, varia entre a publicidade de supermercado ou ofertas de crédito com fantásticas taxas de juro de 11% de uma qualquer cofidis. Até as contas – a adrenalina do mês, como lhes chama o meu pai –, já nos aparecem nos computadores e smartphones, em formato digital.
Ontem, enfim, pensei, antes de ir dormir, que já não ia ao correio há uma semana. Desafiei os graus negativos, e lá fui enfiar a mão naquela montanha de papiro.
Devo dizer que a entrada em Abril é, daqui de onde vos escrevo, de autêntica tortura para mim. Na minha Lisboa natal, o céu azul começa a acompanhar-se de algum calor, vocês arriscam nas t-shirts, e eu aqui, entre impropérios verbais, desloco-me em temperaturas que não convidam à interacção com outros humanos.
É a altura do ano em que repito que já chega, que agora é que me vou mesmo embora. Depois visto um casaco, acalmo-me, e espero pelo próximo Abril. O décimo sétimo, neste meu caso.
Mas já me desviei do tema, e levei-vos por divagações pouco importantes para o tema em debate. Peço desde já perdão pela minha reduzida capacidade de síntese…
O entulho na minha caixa de correio, voltemos a ele.
Entre a resma de publicidade estava um panfleto do partido liberal de cá. Em linhas gerais dizia que a Suécia devia entrar na NATO (e já!), e que o país teria que investir mais na defesa.
Acrescentavam ainda que há já 10 anos que defendiam esta ideia, e que hoje estaria mais actual do que nunca por causa do “efeito Putin”.
Confesso-vos, com alguma tristeza, que não tenho seguido o partido liberal sueco na última década, mas percebo agora, com algum embaraço, que tenho perdido momentos memoráveis.
Fiquei a pensar naquilo até adormecer, e concluí que os liberais suecos têm razão. Diria mais: não só estão cobertos de razão como estão a revitalizar um mercado algo adormecido desde a Guerra Fria. É tempo de a Suécia começar a usar o dinheiro dos impostos para comprar mais armamento.
Existem várias razões para isso. A primeira é que, como sabemos, a compra de material bélico é a primeira forma de prolongar a paz. Quem nunca ouviu “estamos a bombardear para conseguir terminar esta guerra”, que atire a primeira pedra.
Depois, aqui entre nós, a Suécia fez opções políticas a partir da década de 60 do século XX que são um verdadeiro ultraje à vida no limbo da incerteza que todos aspiramos. Investiu fortemente em habitação, num programa que trouxe um tecto para todos, colocou o erário público ao serviço de uma Educação verdadeiramente universal onde, e reparem neste escândalo, os miúdos são subsidiados pelo Estado para estudarem no ensino superior.
Ou seja, os filhos do sapateiro e do astronauta partem do mesmo patamar no que toca às oportunidades na vida. Como se não bastasse, ainda nos sacam mais uma fortuna em impostos para que os mais velhos tenham assistência em casa na fase final da vida, para que os miúdos tenham dentista grátis até aos 26 anos, e para que, de uma forma geral, toda a população tenha assistência gratuita providenciada pelo Serviço Nacional de Saúde.
Por fim, proporcionam a todos, no fim da vida contributiva, uma pensão pública, devolvem em sede de IRS 30% dos juros cobrados pelos bancos, proporcionam centenas de dias de paternidade a cada casal, e garantem uma Segurança Social que não deixa ninguém debaixo da ponte nos momentos mais difíceis.
Como se percebe, um tédio. Uma vida sem surpresas, receios ou aflições provenientes da falta de emprego, falhas de saúde ou azares de percurso.
Pessoalmente, isto tudo enerva-me. Raramente estou doente e não vou a hospitais.
Estudei em Portugal e, em princípio, também passarei por lá o tempo da reforma. Ou seja, nem consigo aproveitar bem os descontos. Já se tivéssemos um grupo de vigilantes em cada bairro, talvez com um tanque ou um lança-mísseis, sempre me poderia entreter nas noites de frio, que vão de Agosto a Julho. De resto, são óptimas.
Como se não bastasse, com estas escolhas de investimento, a Suécia conseguiu, durante décadas, figurar entre os mais ricos do mundo, com elevada percentagem da população a concluir o ensino superior e a chegar a um valor mínimo de salário a rondar os 2.000 euros (não oficial).
Note-se ainda que, para os senhores da guerra, fãs dos mercados e da corrida ao armamento, que durante estes anos de paz e neutralidade, parte do desenvolvimento económico da Suécia foi também assente na produção e venda de equipamento militar.
Cerca de 2% dos tiros dados a nível mundial são produzidos pela Suécia. Nada mau para uma população igual à portuguesa. Ambos têm 0,13% da população mundial. No fundo, a Suécia pratica aquela paz que consiste em vender armas aos dois lados. Onde é que já vi isto?
Mas essa neutralidade, com uma mancha aqui e outra ali, valeu 77 anos de prosperidade e de enorme crescimento económico, reflectido diretamente na qualidade de vida dos seus habitantes.
Chegados aqui, o que devemos fazer?
Seguir uma receita de sucesso testada ao longo de quase oito décadas, ou desviar os fundos que construíram isto para nos armarmos até aos dentes? Melhor, perante a ausência de ameaça, devemos criar uma narrativa para que passemos a ter uma preocupação nova?
Eu acho que sim. E entendo perfeitamente os liberais. Tal como eles, também eu estou aborrecido com esta vida calma, organizada e sem problemas. Aliás, quando aqui cheguei em 2007 fiquei logo desconfiado.
Habituado em Lisboa a entregar uma bíblia impressa em A4, a que chamavam declaração de IRS, fiquei estupefacto quando apenas me pediram um sms com a mensagem; “sim” ou “não”, para fazer o mesmo em Gotemburgo, ao fim do meu primeiro ano de trabalho. Era o primeiro de vários anos sem emoções e irritações com o quotidiano.
Assim, há que aderir à NATO, e meter um alvo nas nossas costas. Há que tirar dinheiro das escolas e canalizá-lo para mísseis. E depois é deixar os mercados agirem. Todos temos visto ao longo do último mês como eles se ajustam bem.
É como diz o poeta João: o liberalismo é necessário e funciona.
Primeiro cria-se o deserto, depois vende-se a água. Brilhante.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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