“Tá lá? É do inimigo? Olha vocês podiam-me parar a guerra agora aí um bocadinho? Sim? Tenho aqui um colega com dores de cabeça! Tá bem. E também temos o canhão encravado. Sim. Foi o Alfredo que meteu a cabeça lá dentro para fazer a revista e agora não a consegue tirar! Já pusemos sabão já, mas a cabeça não sai!”
Assim começa um dos sketches humorísticos mais conhecidos de Raul Solnado, um dos principais protagonistas da história do humor em Portugal.
Mas nada temas, caro Raul, o bom de já se ter falecido é que, em princípio, ninguém vai atrás de si para o cancelar! Digo em princípio porque da maneira que isto vai, e a julgar pelas reações públicas ao caso Smith versus Rock, hoje em dia damos prioridade a enaltecer a violência e a condenar o humor.
Calma, não me entendam mal! Sei perfeitamente que somos todos contra a violência, e se dúvidas houvesse, muitas foram as pessoas que fizeram questão de o esclarecer nas redes sociais, publicando variadíssimas vezes a frase “Não à violência, mas…” E é sobre este – “mas…” – que me apraz propor uma reflexão conjunta.
Debrucemo-nos então sobre o assunto do momento.
Na cerimónia dos Óscares deste ano, Chris Rock, um conhecido comediante fez uma piada sobre a ausência de cabelo da mulher do ator Will Smith, Jada Pinkett Smith, também ela atriz. Tal piada, desencadeou uma série de acontecimentos desengraçados: o caminhar furioso de Smith até ao palco onde se encontrava Rock, a bofetada de Smith a Rock, e o bradar de insultos e ameaças de Smith a Rock, já regressado ao seu lugar sentado, junto dos seus pares hollywoodescos.
Perante tal acontecimento, o Mundo dividiu-se em dois: aqueles que condenaram veemente a agressão de Smith a Rock, e aqueles que condenando também tal agressão, fizeram questão de a minimizar, com argumentos muito próximos do ditado popular de “quem não se sente, não é filho de boa gente”. Assim, “Não à violência, mas…” torna-se compreensível que Smith tenha “perdido a cabeça” a uma piada envolvendo a cabeça da sua esposa, trazendo novamente para debate público a velha discussão sobre os limites do humor.
Contudo a primeira reação de Smith à piada de Rock foi rir-se. Então não terá sido tanto a piada em si que irritou o Will, mas antes perceber o desagrado da Jada. Ainda bem que a discussão sobre os limites do humor causa atualmente mais proclamação do bom samaritanismo do que o culpabilizar das mulheres pela masculinidade tóxica, caso contrário a discussão neste momento seria bem diferente, mais no âmbito do feminismo e tal. Mas não será este caso merecedor de uma reflexão feminista também?
Sendo eu uma dessas pessoas que acredita na igualdade de género, parece-me pertinente questionar se este retorno aos filmes da Wall Disney, quando as princesas indefesas estavam totalmente dependentes de um príncipe encantado e valentão que as viesse salvar, não deita por terra o trabalho devolvido ao longo das últimas seis décadas pela emancipação da mulher, pelo reconhecimento do seu espaço para ação, para o seu entendimento enquanto semelhante e não inferior ao género masculino?
Ou será que tal agressão, entendida como um gesto másculo e heroico do príncipe de Bel-Air nada mais foi do que a manifestação da masculinidade tóxica, denunciada, nos últimos sessenta anos, pelas feministas?
Talvez a melhor forma de entender o caso Smith versus Rock seja uma contextualização histórica.
Regressemos então ao ano de 2016, quando o Will e a Jada resolveram boicotar a cerimónia dos Óscares como forma de protesto pela ausência de nomeados negros nas categorias de atuação (todas as vinte indicações ao Óscar nas categorias de atuação foram para artistas brancos), juntando-se assim ao movimento de protesto que ficou conhecido como “#OscarsSoWhite”.
Chris Rock, apresentador da cerimónia nesse mesmo ano, fez algumas piadas sobre a ausência do casal, piadas essas que, segundo foi noticiado na época, não teriam caído bem ao casal de atores.
Ignoremos o facto de este ano, das vinte indicações de atuação, apenas quatro foram para atores negros, incluindo a nomeação do Will ao Óscar de melhor ator, o que parece denunciar que ao Will preocupava mais a ausência de representatividade do Will nas nomeações ao Óscar de melhor ator do que a falta de representatividade de negros nas nomeações aos Óscares de representação.
Deixemos de lado também considerações legais sobre este episódio, uma vez que o Ricardo Araújo Pereira já veio esclarecer aos menos esclarecidos, a diferença entre uma piada e uma agressão: sobre a primeira o código penal nada diz, e sobre a segunda tipifica-a como um crime. Concentremo-nos então na conjunção adversativa contida na frase “Não à violência, mas…”
Este “mas” refere-se exatamente a quê? Aquilo que é aceitável que nos faça rir? É porque quando algo desperta o meu lado mais jocoso normalmente é pela forma como é dito, pelo absurdo da situação, ou pelo quão próxima determinada caricatura está da realidade.
Ou será que quando nos rimos de “Roubos, e não é muitos, e não são poucos, não é? Bastantes!”; “Eu sei lá menina se são os chineses ou o C*”; “Custa-me muito aturar este barulho porque eu já sofro da cabeça quase de nascença.”; “Dá-me o pito. Foi os termos que ele falou. E eu grito: Nãoooo!”, “Tenho muita humidade. É só, a gente também não pode dizer mais do que é. É só humidade.”; “Filha da mãe que tens uma grande patite v.”; “Chega ao fim sai o trabalho e o dinheiro está no C*”, estamos a gozar com a desgraça destas pessoas?
Com os assaltos em cemitérios?
Com a xenofobia?
Com as doenças neurológicas?
Com as violações sexuais?
Com as más condições de habitação?
Com as infeções sexualmente transmissíveis?
Com a exploração laboral?
Estava em crer que não, mas talvez esteja enganada, não é raro.
Ou será que este “mas…” diz respeito à existência de temas sobre os quais não se pode fazer humor? Ou seja, sobre a calvície não se podem fazer piadas, mas com doenças neurodegenerativas já se pode, como as sempre foram feitas em relação ao Stephen Hawking, e mais recentemente aqui pelo nosso Portugal, em relação ao Ricardo Salgado.
Faz sentido, até porque é de senso comum que sobre carecas não se fazem piadas, até porque é dos carecas que elas gostam mais. Contudo, e para que de futuro possamos todos evitar ter de recorrer ao método “só à chapada”, será que algum grupo de entendidos pode ter a amabilidade de se reunir, como já se fez para se escrever a Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas agora para redigirem a Declaração Universal das Piadas de Bom Tom?
Dava-nos jeito a todos para evitar discussões absurdas nas redes sociais e consequentes animosidades, e a mim, em particular, dava-me jeito para evitar ter de pousar os livros e ir inscrever-me numas aulas de pugilismo. É que doutra forma não me safo.
Mas como sou uma adepta da democracia, o que implica aceitar a decisão da maioria, também se decidirem proibir todo e qualquer tipo de humor, nem precisam de me convidar a tal, porque “aqui estou, aqui estou, Manuel Acácio!”
Porém, será que os portugueses estão assim tão dispostos a censurar ou proibir o humor?
As evidências parecem demonstrar que não: o podcast mais ouvido em Portugal em 2021 foi o “Extremamente desagradável” de Joana Marques; “Isto é gozar com quem trabalha”, de Ricardo Araújo Pereira, tem uma audiência média de um milhão de espectadores; “Como é que o bicho mexe” de Bruno Nogueira, teve mais de cem mil visualizações no último direto de Instagram em 2020; o “Relatório DB” de Diogo Batáguas, todos os meses tem liderado as tendências no Youtube em Portugal; e o canal de Youtube “Os primos” tem 213 mil subscritores.
Por estes exemplos, eu responderia que não, mas olhando às discussões facebookianas a que assisti nos últimos dias, tenho as minhas dúvidas. Para que possamos todos dar resposta à questão colocada, proponho que reúnam a família para uma ronda do jogo “preferias”.
Então, preferiam o Putin num bar em Moscovo, a beber umas vodcas com os seus compinchas oligarcas, e a contar anedotas sobre Ucranianos, ou a usar o dinheiro desses mesmos amiguinhos, a invadir a Ucrânia, e a matar uns quantos Ucranianos, enquanto bebe umas vodcas? Hum, é difícil? “Diga um, diga um, Pedro, diga um!”
Para não terminar numa nota negativa, analisemos os resultados do caso Smith versus Rock, pelo lado positivo.
O Chris ficou com a cara quentinha e fartou-se de vender bilhetes para o seu espetáculo ao vivo.
A Jada teve os seus cinco minutos de importamo-nos todos contigo e com a tua condição médica (mas só com a dela); e nós podemos todos fingir que sabíamos o que era a alopecia, vestir o fato de bom-samaritanos, e aparecer nas redes sociais para parecermos todos pessoas muito compreensivas e empáticas porque “Não há violência, mas…” continuemos a desculpabilizar e a justificar aqueles que a praticam!
E quanto ao Will, não só teve direito a permanecer na cerimónia como ainda angariou o Óscar para melhor actor, fez um discurso de aceitação merecedor de mais um Óscar, e vai finalmente abraçar a terapia e iniciar o seu processo de cura.
Contas feitas, o único derrotado da noite foi mesmo o humor, que ironicamente, foi o responsável por todas estas conquistas.
Faço meus os votos de Raul Solnado, “Façam o favor de serem felizes!”, e acrescento ainda “Não há violência”, sem nem mas nem meio mas! E agora “vou sair, vou abandonar que eu tenho uma consulta agora às cinco horas, cinco e meia, não posso estar aqui.”
Professora universitária
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