Recensão: Vidas seguintes

O tempo tocado por um acordeonista

por Luís Serpa // Abril 8, 2022


Categoria: Cultura

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Título

Vidas seguintes

Autor

ABDULRAZAK GURNAH (tradução: Eugénia Antunes)

Editora (Edição)

Cavalo de Ferro (Fevereiro de 2022)

Cotação

17/20

Recensão

Devo começar por avisar os leitores de que abordo sempre os livros sobre o colonialismo e/ou o pós-colonialismo com enorme desconfiança. Sei, por experiência, que as equações branco = colonizador = mau e preto = colonizado = bom são tão falsas quanto nefastas. Essas equações fazem, infelizmente, parte do corpus do pensamento contemporâneo, e poucas ou raras são as obras sobre o tema que lhes escapam.

Não se pode dizer que Vidas seguintes seja uma dessas obras, mas pode – e deve – dizer-se que tem pelo menos o mérito de não as abraçar de olhos fechados. O romance é bastante crítico em relação aos usos e costumes locais, embora trate diferentemente os horrores dos colonizadores e os horrores das personagens indígenas. Verdade seja dita que a colonização alemã foi particularmente brutal, e é compreensível que o autor adjective mais a sua brutalidade do que a dos usos e costumes que descreve.

Isto dito, Vidas seguintes é a história de quatro personagens: Ylias, Afiya, Hamza e Khalifa, que acabam por se encontrar apesar de, à partida, só Afiya e Ylias (irmãos) se conhecerem. Tem um escopo temporal de aproximadamente 80 anos, se bem que o miolo da história se concentre em 60 desses anos.

A acção decorre na região que é agora a Tanzânia – começa quando era parte da África alemã, passa para os anos de colonialismo inglês e mal menciona a independência.

Ylias alista-se nas terríveis tropas coloniais alemãs, Afiya casa-se com Hamza que se torna colega de Khalifa. O quarteto nunca chega a sê-lo, pois Ylias desaparece bastante cedo da narrativa, e só se mantém presente porque a irmã não perde a esperança de o rever. Só no último capítulo saberemos o que lhe aconteceu.

Contada no habitual estilo sóbrio, factual e de poucos adjectivos da literatura anglo-saxónica, as histórias prendem-nos desde muito cedo para não mais nos largarem. As personagens vão-se construindo pouco a pouco, desde o início e vão-se «solidificando», sedimentando ao longo das respectivas histórias.

A técnica narrativa do autor é sublime. Joga com o tempo como um acordeonista com o seu instrumento, ora esticando-o ora encolhendo-o com uma maestria excepcional. Um capítulo pode cobrir dez anos, e outro um ou dois, e tudo flui "naturalmente".

Este livro é excelente tanto para quem se interessa apenas pelo estilo como para quem dá a prioridade ao enredo. Nada aparece forçado, um erro tão frequente nestas histórias de pessoas que se encontram "por acaso".

 A tradução é boa. Há uma grande quantidade de termos em suaíli, que não estão traduzidos, aparentemente uma escolha do autor.

Até ganhar o Nobel (2021), Abdulrazak Gurnah era pouco conhecido fora do Reino Unido. Nasceu em Zanzibar em 1948, abandonou a ilha e foi para Inglaterra em 1968 devido à perseguição de que os naturais de origem árabe foram alvo depois da Revolução de Zanzibar (1964).

De 1980 a 1982 foi professor na universidade de Kano, na Nigéria e de 1982 até à sua reforma (2017) deu aulas de literaturas inglesa e pós-colonial na universidade de Kent.

É autor de uma dezena de romances, vários contos e de obras de não-ficção – ensaios e crítica. Esteve por duas vezes nas listas do Booker mas nunca o ganhou. Em 2006 foi eleito fellow da Royal Society of Literature. O Nobel provocou uma corrida às suas obras, muitas delas esgotadas ou difíceis de encontrar.

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