Recensão: Para acabar de vez com Eddy Bellegueule

A metamorfose de um beijo

por Maria Carneiro // Abril 9, 2022


Categoria: Cultura

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Título

Para acabar de vez com Eddy Bellegueule

Autor

Édouard Louis (tradução: António Guerreiro)

Editora (Edição)

Elsinore (Fevereiro de 2022)

Cotação

18/20

Recensão

Este livro tem como tema central a homofobia. A vítima é o narrador. É também autor porque se trata, de facto, de um romance quase autobiográfico.

Não no sentido em que o são todos (dificilmente escalpelizamos, com coerência, emoções e sentimentos sem que os tenhamos vivido), mas no sentido em que o autor foi, de uma forma constante, vítima de bullying durante toda a sua infância e parte da adolescência. 

As descrições que Eddy, a personagem principal, faz de algumas das agressões de que foi vítima são perturbadoras e dolorosas. “Da minha infância não tenho nenhuma recordação feliz”.

Começa assim. “No corredor apareceram dois rapazes, o primeiro, grande, de cabelos ruivos, e o outro pequeno, de costas arqueadas. O matulão de cabelos ruivos escarrou. Toma lá nesse focinho (…) No corredor, perguntaram-me quem eu era, se era eu o Bellegueule de quem toda a gente falava. Fizeram-me esta pergunta que depois repeti incansavelmente durante meses, anos

És tu o paneleiro?”

Era. E a forma com que o tratam por causa dos trejeitos, da forma de falar, do facto de só se relacionar com raparigas, e não gostar de jogar futebol e de participar em outras brincadeiras “próprias de rapazes”, é de uma violência devastadora. Da parte desses dois agressores, mas também da família, uma vez que havia toda uma espiral de violência e humilhação na história trágica dos pais, como se de uma maldição herdada se tratasse, dos vizinhos, da avó, da escola, da aldeia toda.

Édouard Louis, o autor francês, nasceu em Hallencourt (Picardia) no ano de 1992. Estudou História na Universidade de Picardia e Sociologia na Escola Normal Superior de Paris.

Este romance foi dedicado ao filósofo e sociólogo, Didier Eribon autor de Regresso a Reims, sendo o seu livro de estreia. Entretanto, já publicou outros, com igual sucesso.

Este é composto por duas partes, "Livro I" e "Livro II”, respetivamente, “Picardia (final dos anos 1990 - início dos 2000)" e Falha e fuga”, seguido de um epílogo, e é surpreendente que o autor o tenha escrito com apenas 19 anos de idade, uma vez que revela uma maturidade e autenticidade surpreendentes.

As experiências narradas retratam um universo onde a pobreza, o consumo de álcool, e outras dependências, são omnipresentes numa aldeia onde a reprodução social leva as mulheres a tornarem-se caixas de supermercado, após terem abandonado, precocemente, os estudos; e os homens a mudarem-se da escola para a fábrica, logo que possam trabalhar.

Foi a este destino que Eddy quis fugir. Um combate duplo: para além do contexto social sufocante e castrador, tinha um corpo que não obedecia aos ditames sociais.

As namoradas com quem se forçava a relacionar-se não lhe despertavam o desejo: “Não conseguia simular o desejo. Tentei pensar noutra coisa para que o meu sexo se erguesse e a Sabrina se sentisse tranquila, mas quanto mais me concentrava mais as hipóteses de despertar a minha excitação se tornavam improváveis e longínquas”.

O corpo, com vontade própria, só se excitava com a visão, ou com o toque, de um corpo masculino. Depois de se ter convencido disso “o meu corpo nunca mais deixou de se rebelar contra mim, chamando-me para o meu desejo e aniquilando todas as minhas ambições de ser como os outros, de gostar também de raparigas”, Eddy fugiu. Ir estudar numa Escola de Teatro, longe da aldeia, longe da família, longe de tudo o que o fazia sofrer, pareceu-lhe a única saída. Mas o passado seguiu-o. Acaba assim:

“Estamos no corredor, diante da porta 117, à espera da professora, a senhora Cotinet.

Alguém chega.

Tristan

Interpela-me

-Então, Eddy, continuas bicha?

Os outros riem

Eu também.”

Apesar de ser um romance com uma linguagem crua e dura é também comovente e terno. Uma belíssima descoberta.

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