Recensão: A entrada na Guerra

As peripécias de quem não sabia (ainda) o que era uma guerra

por Pedro Almeida Vieira // Abril 17, 2022


Categoria: Cultura

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Título

A entrada na Guerra

Autor

ITALO CALVINO (tradução: Leonor Reis e Sousa)

Editora (Edição)

Dom Quixote (Abril de 2022)

Cotação

17/20

Recensão

Aos 31 anos, Italo Calvino escreveu A entrada na guerra, uma das suas obras menos conhecidas, e que em boa hora, e de forma muito oportuna, a Dom Quixote agora edita, pela primeira vez, em Portugal.

A oportunidade não se deve apenas por dar a conhecer aos leitores portugueses (por ser até agora inédita no nosso país) uma das primeiras obras deste escritor italiano – hoje merecidamente um dos grandes da Literatura europeia do século XX –, ainda mais autobiográfica.

Nem por retratar o período inicial da II Guerra Mundial, que pode, aqui e ali, invocar os actuais acontecimentos na Ucrânia.

Na verdade, deve-se a estes dois factores, mas sobretudo à sua qualidade literária, e por ser um retrato do início de uma guerra por alguém que, na verdade, está a iniciar a sua vida.

Calvino, nascido em 1923 nos arredores de Havana (Cuba), por um acaso familiar, contava apenas 31 anos quando publicou, em 1954, as três breves memórias que constituem est'A entrada na guerra. Estava ainda longe das suas obras mais emblemáticas como Os amores difíceis (1970), As cidades invisíveis (1972) e Se numa noite de inverno um viajante (1979), mas já havia publicado O visconde cortado ao meio (1952), a primeira parte da magistral trilogia fantástica de Os nossos antepassados, completada ainda na década de 50: O barão trepador (1957), e O cavaleiro inexistente (1959).

Mesmo sendo um livro de memórias, sem possuir, assim, a pretensão de contar uma história, esta obra tem dois fascínios. Primeiro, não aparenta ser escrito por um adulto de 31 anos, mas antes é a voz e o sentimento do adolescente Calvino a confrontar-se com a realidade de uma nova guerra que se avizinhava, mas que para jovens italianos parecia algo que somente quebrava o quotidiano, criando-lhes um mundo de aventuras. Segundo, já se lhe nota um amadurecimento da prosa, já bem visível em O visconde cortado ao meio, uma segurança na simplicidade como discorre a narrativa e a pontua com detalhes, por vezes desconcertantes. 

A primeira parte, A entrada na guerra, que lhe dá título à obra, é datada no dia 10 de Junho de 1940. Encontra o jovem Calvino, como vanguardista (milícia juvenil homóloga à Mocidade Portuguesa), ajudando como pode (e quer e lhe apetece) a dar sopa aos refugiados que chegavam a uma escola, e onde o que mais “saltava à vista (…) era a presença de aleijados, de idiotas, de mulheres barbudas, anões, eram os lábios e narizes deformados por lúpus, era o olhar impotente dos doentes com delirium tremens: era este o rosto sombrio das aldeias de montanha, agora obrigado a revelar-se, a desfilar nas paradas o velho segredo das famílias camponesas à volta de quem as casas das aldeias se apertam umas contra as outras como as escamas de uma pinha”.

A segunda parte, Os vanguardistas de Menton, temos um involuntário e imberbe Calvino a participar na pilhagem daquela pequena cidade francesa que caiu nas mãos de Mussolini em meados de 1940. Também aqui, jornalisticamente, o jovem Calvino revela a existência da máquina de propaganda, já então com as suas fake news: “Tínhamos visto recentemente no cinema um documentário que mostrava a luta das nossas tropas nas ruas de Menton; mas nós sabíamos que era falso, que Menton não tinha sido conquistada por ninguém, mas apenas abandonada pelo exército francês na altura do ataque e depois ocupada e pilhada pelos nossos.”

O retrato de Calvino não chega a ser pungente nem sequer demasiado crítico da “selvajaria” das pilhagens, as quais acompanha e participa, para não ser considerado “estúpido”, mas sem qualquer entusiasmo.

A terceira e derradeira parte, As noites da UNPA (Unione Nazionale Protezione Antiaerea, um corpo de voluntários para socorro da população civil em caso de ataques aéreos), retrata "tempos em que ainda não se sabia o que era o terror; pelas ruas viam-se apenas sinais do despertar geral e brusco: vozes nas casas, luzes que se acendiam e eram logo apagadas, e pessoas meio vestidas às portas dos abrigos olhando para o ar”. Por isso, o relato incide sobretudo nas aventuras, brincadeiras, partidas e descobertas de Calvino e dos seus amigos em San Remo durante um blackout.

Nada, nesta obra, retrata o período posterior da vida de Calvino na sua chegada à fase adulta, com a entrada na Universidade de Turim e depois Florença – onde estudou a contragosto Agricultura, por pressão paterna –, e muito menos a sua entrada na Resistência italiana comunista. Não era preciso. Está muito, muito bom assim como ficou.

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