A conversa de aumento de salário indexado à produtividade, repetida até à exaustão, é uma narrativa que me enerva. Como tal, acaba em texto.
Já todos perceberam esta parte, e por isso avancemos para o cerne da questão, como diria Pacheco Pereira, o mais famoso comunista nos quadros do PSD.
Apesar dos lucros estratosféricos, a Sonae recebeu um apoio do Estado como forma de compensação para o aumento do salário mínimo nacional. Gente que fez a contas reporta que, com apenas 0,15% dos lucros do último ano, a Sonae conseguiria sem qualquer ajuda pública pagar o aumento envergonhado do salário mínimo.
Ao mesmo tempo, a companhia divulgou um aumento no salário da sua CEO na ordem do meio milhão de euros. Arredondando, chegamos mais ou menos ao apoio recebido do Governo.
Liberais, apoiantes do Chega, saudosos do Passos Coelho e os quatro apoiantes do Nuno Melo dizem: “Qual é o problema? Uma empresa remunera a sua Administração como bem entender.”
Permitam-me discordar.
Uma empresa privada faz o que quer na sua gestão, desde que não receba fundos públicos de apoio.
Depois, e esta é uma opinião arriscada que assumo, não podem as empresas continuar com este eterno modelo de salários miseráveis na base da pirâmide; e, depois, sem qualquer problema ético ou moral, continuarem a premiar os gestores de topo. Estes recebem salários anuais de milhões; cá em baixo, uma operadora de caixa do Continente luta para sobreviver com 750 euros mensais.
Se é este o modelo ad aeternum dos empresários portugueses, assumamos todos que queremos um país de mão de obra barata, onde os mais qualificados procuram a porta da emigração e se recusam a viver na pobreza, mesmo trabalhando 40 horas semanais.
Esse é o drama nacional: ser possível trabalhar 160 horas por mês em Portugal e ser pobre.
Este é um conceito que, na tal comunidade ocidental, que se resume a 10% dos países mundiais, já não existe. Uma pessoa que trabalhe um horário regular tem, a troco da sua força laboral, a recompensa suficiente para uma vida digna, confortável e digna.
Não é pobre, não tem que alugar uma casa até à velhice, e, luxo dos luxos, até se pode dar ao desplante de ver um bocadinho do Mundo que a rodeia.
Numa frase simples, pode viver sem a angústia de escolher entre a conta da luz, os livros escolares dos filhos. Ou o bife de vaca, que a Jonet já nos avisou, há uns anos, não poder ser um hábito, enquanto nos continua a carpir que compremos para o seu Banco Alimentar latas de atum e esparguete para os pobrezinhos no Continente, aumentando os lucros da Sonae e engrossando as receitas de IVA do Estado.
Aquilo que a Sonae e outros grandes grupos deseja é algo verdadeiramente simples: maximização dos lucros através de baixos salários. Uma espécie de fado português, aqui e ali interrompido pela confederação dos patrões para nos explicar, como se fôssemos todos idiotas, não ser possível aumentar salários (começando pelo mínimo) se a produtividade não aumentar.
Lembro-me sempre do modelo de negócio da Padaria Portuguesa, com incontáveis lojas em Lisboa e tão elogiada pela sua gestão. Até recordo, com algum carinho, um dos gestores de topo que dizia, numa reportagem qualquer, que o salário não era tudo; o amor que davam aos funcionários era mais importante.
Compreende-se, porque olhando apenas para o salário mínimo, torna-se difícil sentir a chama da paixão.
Ao fim de 15 dias de lockdown, por causa da covid-19, a empresa com lucros fabulosos e, uma vez mais, um mundo de distância entre a base e o topo da pirâmide, pedia ajuda ao Governo para pagar salários.
Portanto, quando me dizem que uma empresa privada, como a Sonae, paga o que quiser aos seus funcionários, eu até sou, enfim, obrigado a concordar. E mesmo quando direccionam apoios estatais para o CEO, eu também, enfim, tenho de aceitar. São os mercados. As regras da gestão privada. Agora, não posso é continuar a engolir a argumentação da produtividade ligada a salários que não sejam de fome.
Portugal tem uma faixa salarial que nos envergonha. Não está só na cauda da Europa civilizada como se aproxima, a passos largos, do Terceiro Mundo.
A Sonae choca porque é um dos maiores empregadores, e mesmo assim escolhe, sem qualquer vergonha, a estrada da mais injusta distribuição de lucros entres trabalhadores.
E se aceitamos, pacificamente, a imoralidade da distribuição dos lucros apenas no topo da pirâmide, estamos apenas a fazer um favor a quem vê nos trabalhadores portugueses uma fonte de rendimento de baixíssimo custo.
Com o aproximar da data percebe-se que, afinal, talvez seja tempo de uma nova Revolução. Não pode um país, com mais de três décadas a receber fundos europeus, achar normal que 20% da população esteja na pobreza e, entre os que trabalham, mais de 70% traga para casa menos de 900 euros mensais.
Viver é qualquer coisa mais. Em Portugal sobrevive-se. Sem contestação.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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