António Morais manteve-se como consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS) e do Infarmed depois de ter tomado posse em 2019 como presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), uma das associações médicas com maiores relações comerciais com a indústria farmacêutica. A lei determina que só poderia manter aquelas funções se a SPP recebesse em média um máximo de 50 mil euros por ano. Porém, a SPP recebeu no último quinquénio 17 vezes mais do que esse patamar. Todas as decisões da DGS e do Infarmed que tenham sido tomadas com base em pareceres de António Morais estão feridas de nulidade.
O presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), António Morais, está a violar há três anos as regras de incompatibilidade que o deveriam impedir de se manter como consultor do Infarmed e da Direcção-Geral da Saúde. As decisões administrativas que tenham sido tomadas com base em pareceres em que este pneumologista tenha participado são nulas.
As duas entidades públicas, contactadas pelo PÁGINA UM, não se pronunciam. António Morais – que é desde 2016, e apresenta-se como tal no seu currículo, consultor de doenças intersticiais pulmonares do Programa Nacional para as Doenças Respiratórias da DGS e membro da Comissão de Avaliação de Tecnologias de Saúde do Infarmed – também não respondeu ao pedido de esclarecimentos.
Em causa está o incumprimento do regime de incompatibilidade previsto num decreto-lei de 2014 que abrange consultores, membros de comissões, grupos de trabalho, júris de concursos que, entre outras funções, “participem na escolha, avaliação, emissão de normas e orientações de carácter clínico, elaboração de formulários, nas áreas do medicamento e do dispositivo médico no âmbito dos estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde, independentemente da sua natureza jurídica, bem como dos serviços e organismos do Ministério da Saúde”.
As normas deste diploma acabaram também por ser adoptadas pelo Infarmed, a entidade reguladora dos medicamentos.
De entre as diversas incompatibilidades, aquela que mais salta à vista, no caso de António Morais, é a que proíbe os consultores da DGS e do Infarmed de serem membros de órgãos sociais de sociedades científicas – como é o caso da SPP – que “tenham recebido financiamentos de empresas produtoras, distribuidoras ou vendedoras de medicamentos ou dispositivos médicos, em média por cada ano num período de tempo considerado até cinco anos anteriores, num valor total superior a 50.000”.
Ora, António Morais preside à SPP desde 14 de Janeiro de 2019, e esta sociedade médica ultrapassa larguíssimamente o patamar dos 50 mil euros anuais. Quando este pneumologista – que exerce no Hospital de São João e na Trofa Saúde, além de ser também professor na Faculdade de Medicina do Porto – tomou posse, a SPP tinha recebido no quinquénio anterior uma média de 799.634 euros do sector farmacêutico, ou seja, 16 vezes mais do que o limite imposto pela norma das incompatibilidades.
No quinquénio 2017-2021, que engloba já os três anos de presidência de António Morais, os montantes arrecadados pela SPP ainda aumentaram mais: situam-se nos 870.512 euros por ano. Para este aumento muito contribuiu o ano passado em que a SPP recebeu um financiamento recorde vindo do sector farmacêutico de 1.301.972 euros.
Até à data, de acordo com a Plataforma da Publicidade e Transparência do Infarmed, a SPP amealhou 329.393 euros em 2022, mas usualmente a maior fatia de patrocínios e contratos comerciais com a indústria farmacêutica regista-se no último trimestre de cada ano no âmbito do Congresso de Pneumologia.
No ano passado, para a realização deste evento de três dias num hotel de cinco estrelas em Vilamoura, a SPP obteve quase 370 mil euros de patrocínios, além de inscrições de médicos no valor de 193 mil euros que acabaram também por ser pagas pelas farmacêuticas.
Sé neste último quinquénio, a SPP recebeu mais de 50 mil euros em média por ano de nove companhias farmacêuticas: Boehringer Ingelheim (104.034 euros), Novartis Farma (90.914 euros), BIAL (89.236 euros) Pfizer (82.440 euros), GlaxoSmithKline (71.189 euros), A. Menarini (68.533 euros), AstraZeneca (61.930 euros), Roche (53.050 euros) e Sanofi (51.895 euros). Teve ainda relações comerciais, envolvendo sobretudo patrocínios, de mais 20 empresas farmacêuticas e de produtos médicos.
Para além da questão ética, as incompatibilidades de António Morais têm consequências legais e jurídicas muito graves. De acordo com o artigo 5º do Decreto-Lei nº 14/2014, “os pareceres emitidos ou as decisões tomadas por comissões, grupos de trabalho, júris e consultores, em que intervenham elementos em situação de incompatibilidade não produzem quaisquer efeitos jurídicos”, o que significa, em consequência, que “as decisões dos órgãos deliberativos (…) são nulas”, caso se baseiem naqueles pareceres.
António Morais, por seu turno, pode vir também a ser sancionado, porque o artigo 6º do mesmo diploma legal determina a obrigatoriedade de ele cessar as suas funções de consultor a partir do dia de tomada de posse como presidente da SPP (14 de Janeiro de 2019). O PÁGINA UM teve acesso à sua última declaração, com data de 5 de Março de 2018 – numa altura, portanto, em que ainda não presidia à SPP, e não estaria a violar o regime de incompatibilidades –, e que ainda consta no site do Infarmed.
Por essa falha, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde pode, de acordo com a lei, aplicar-lhe uma coima entre 2.000 e 3.500 euros.