VISTO DE FORA

Hoje mais do que nunca, sempre!

person holding camera lens

por Tiago Franco // Abril 25, 2022


Categoria: Opinião

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Na capa da revista do semanário Novo, João Lagos, o conhecido organizador do Estoril Open, dizia há poucos dias que “cheirou-me que o 25 de Abril não seria bom para o ténis”.

O contexto completo seria que, nessa altura, sendo o ténis um desporto de elites, depois do 25 de Abril de 1974 passaram os seus executantes a serem chamados de fascistas, burgueses e por aí fora.

O Novo, que apesar do nome já cheira a mofo, vai fazendo o que pode para trazer os valores, os interesses e as notícias de outros tempos. Imagino que tenham na calha um exclusivo da Exposição do Mundo Português de 1940 e ainda um roteiro gastronómico com as melhores tascas de Santa Comba Dão.

yellow ball on water during night time

Devo dizer que concordo no essencial com João Lagos. O ténis sofreu com a Revolução. Antes era um desporto reservado a uma certa classe social. Por exemplo, nas colónias, os campos de ténis eram só utilizados pelos colonos brancos. Hoje, qualquer preto da Amadora vai à Decathlon em Alfragide e compra uma raquete por 30 euros. Onde é que isto vai parar?

Mas não foi só o ténis que sofreu com a insurreição dos Capitães. Assim de repente lembro-me de mais umas quantas actividades que ficaram para sempre traumatizadas.

Por exemplo, o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Antes desse 25 de Abril de má memória, simplesmente não existia; depois teve que se apresentar ao trabalho e começar uma vida de amarguras com pobres aos rodos nos corredores dos hospitais. A assistência médica durante a ditadura não estava disponível para todos, e em casos mais agudos, e na eventualidade de seres de uma classe mais baixa, falecias só. O que era óptimo em termos de gestão das contas nacionais, porque se poupava muito em pensões e subsídios de desemprego. 

O problema é que nessa altura também não existiam pensões ou subsídios de desemprego. Outra consequência desagradável da Revolução dos Cravos foi a tentativa de criar uma rede social que não deixasse ninguém na miséria absoluta. Pior ainda, decidiram criar um salário mínimo nacional. Portanto, à própria Economia, tal como a João Lagos, lhe cheirou que isto dos chaimites no Largo do Carmo ia dar asneira. 

people in white shirt holding clear drinking glasses

De repente, um país que estava habituado a gastar o dinheiro dos impostos em guerras em África, onde uma geração morria sem saber porquê, viu-se na contingência de criar uma rede de apoio social e um sistema universal de saúde gratuito. Não só as pessoas deixaram de morrer entre saraivadas de balas na selva como, na Metrópole, deixaram de temer uma pneumonia como se de peste se tratasse. Imaginem o rombo nas contas! 

Mas a catástrofe não ficou por aqui. O acesso ao emprego também passou a estar consagrado na Constituição da República e a deixar, legalmente, todos com hipótese de serem o que quisessem ser. Independentemente de sexo, raça, cidadania ou território de origem.

O preto já não tinha que trabalhar na sanzala ou servir o colono. A mulher já não precisava de ficar em casa e ter como objectivo de vida tratar do marido. Agora pensem como isto destruiu o ego masculino e nos trouxe para a cama da insegurança.

Foi o grande boom dos consultórios de psicanálise. Antes de 74 tínhamos criados, zonas em espaços públicos só para brancos e acesso ao emprego condicionado a um clube. Depois da malfadada Revolução, entrámos num mundo aberto e, em teoria, acessível e mais justo para todos. Ao movimento do macho alpha, tal como ao João Lagos, cheirou-lhe logo que isto do PREC ia deixar traumas.

Não contentes com o acesso de todos ao mundo laboral, ainda criaram regras mais ou menos civilizadas. Isto quando o processo de jorna e de recolha de homens nas praças para jornadas de trabalho funcionava tão bem.

De repente, passou a existir um horário de trabalho de oito horas diárias e dois dias de descanso. Em cima disso, a loucura das férias pagas e do direito a licença de maternidade. Foi também nesta altura que o patronato começou, tal como João Lagos, a pensar: “Regras? Isto vai dar merda.”

group of men in black and gray helmet standing on road during daytime

E, por esta altura, ainda não se tinham lembrado do direito à greve. Reclamar? O trabalhador pode reclamar se não concordar com o empregador? Mas está tudo doido? Ainda ontem estavam felizes com um cabaz de pão, vinho e azeitonas, e agora temos que negociar como vender a força de trabalho?

O 25 de Abril foi também muito mau para os lucros dos patrões. Sem aviso, tiveram que começar a tratar os trabalhadores como algo mais próximo de um ser humano.

Mas o pior de tudo, e que Abril nunca mais endireitou, foi a beleza do acto eleitoral do partido único. Uma pessoa sabia sempre o resultado e, aqui e ali, até se contavam votos dos mortos, o que era sempre uma forma de manter os defuntos entre nós. Um conceito de família para a eternidade numa sociedade devota e cheia de fé.

Hoje tudo isto acabou, e qualquer pessoa pode formar um partido político com base nas suas convicções. Por muito idiotas que estas sejam, estão protegidas, em princípio, pela liberdade de expressão e de pensamento. Uma facada irreparável no silêncio e tranquilidade vividas até Março de 74, quando as opiniões eram controladas e as publicações autorizadas apenas depois de passarem no filtro editorial.

Agora todos dizem o que pensam, escrevem o que querem, falam do que lhes apetece. Uma chatice. Se a saudosa PIDE-DGS ainda aplicasse o lápis azul, teríamos para ler, com alguma probabilidade, apenas o Novo e o Observador. O que seria óptimo para as poupanças familiares, sabendo nós, desde que a troika nos informou, que vivemos sempre acima das nossas possibilidades.

Há quem chame a tudo isto Conquistas de Abril.

Conquistas que se vão ensombrando um pouco por toda a Europa com o crescimento dos movimentos de extrema-direita, muitos deles apoiados pelo inimigo número um do momento: o Vladimir, que hoje ninguém conhece mas que, durante anos, passeou, tirou fotografias e fez negócios com os principais líderes europeus.

Até por cá, na nossa pequena democracia, temos um saudoso do Estado Novo que, imitando uma tradição salazarista, forrou os gabinetes dos deputados do seu partido na Assembleia da República com retratos do grande líder. Que saudades desses tempos parece ter o nosso André. 

woman in black and white tank top leaning on wall

O mais importante, e que estes últimos anos parecem querer ensinar-nos, é que nada é garantido. A liberdade que hoje conhecemos está, de facto, constantemente ameaçada por uma classe de privilegiados, dentro e fora de portas, que preferem um mundo cheio de compartimentos e acessos restritos.

E é por isso que, ironias à parte, Abril ainda não terminou. Se há milhões de europeus e milhares de portugueses que, livremente, votam em partidos políticos de índole fascista, significa que a Revolução ainda não cumpriu os seus propósitos.

E por isso dizemos, hoje mais do que nunca, 25 de Abril. Sempre!

Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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