OPINIÃO JURÍDICA

Medidas políticas da gestão da pandemia assentaram em diploma que caducou em Abril de 2021

woman holding sword statue during daytime

por João Pedro César Machado // Maio 2, 2022


Categoria: Opinião

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Tem-me sido questionado se o diploma que instituiu o primeiro Estado de Calamidade em 13 de Março de 2020 (Decreto-Lei nº 10-A/2020) está ou não está em vigor. E, consequentemente, quais os efeitos de todas as resoluções do Conselho de Ministros, bem como de todos os decretos-lei publicados e promulgados pelo Presidente da República desde o fim do Estado de Emergência em Abril de 2021.

E inclui-se aqui, também, a validade do Decreto-Lei 30-E/2022, do passado dia 21 de Abril, que aboliu o uso das máscaras em alguns espaços.

Desde já afirmo que, para além de material e organicamente inconstitucionais, todos os diplomas que foram sendo publicados assentam no Decreto-Lei nº 10-A/2020, que, na minha opinião, já há muito deixou de vigorar, e desde o fim do Estado de Emergência, ou seja, em Abril de 2021.

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Tentando usar uma linguagem o mais simples possível – sendo certo que, nesta matéria, afigura-se um pouco mais difícil, uma vez que se trata de conceitos algo técnicos –, tudo o que afirmo assenta em suporte legal, como sempre tenho feito.

As Resoluções do Conselho de Ministros que, desde 1 de Maio de 2021, têm servido para impor normas ao abrigo do Estado de Calamidade, vão buscar a sua legitimidade ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020.

Sucede, todavia, que:

  • Esse Decreto-Lei n.º 10-A/2020 teve de ser ratificado pela Assembleia da República, através das Lei nº 1-A/2020, publicada em 19 de Março de 2020, que impôs o primeiro Estado de Emergência. Não deixo de estranhar e de sublinhar que uma Lei apenas dispõe para o futuro, e nunca retroactivamente, como foi o caso desta, que fez retroagir a produção dos seus efeitos, para seis dias atrás!

Apenas a Lei Penal tem efeitos retroativos, quando descriminaliza ou despenaliza condutas, o que bem se compreende.

O Governo não tem competência para poder dispor inovatoriamente em matérias que incidem sobre direitos, liberdades e garantias, em situação de calamidade, como tinha feito através desse Decreto-lei. Assim, à data em que o mesmo foi exarado, padecia de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 165º e do nº 1 do artigo 19º da Constituição da República Portuguesa.

Reparem, tentando simplificar o discurso: o Decreto-Lei nº 10-A/2020 decreta o primeiro Estado de Calamidade. A Lei nº 1-A/2020 decreta o primeiro Estado de Emergência, ratificando o Decreto-Lei promulgado seis dias antes.

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  • Terminado o Estado de Emergência, no final de Abril de 2021, tal decreto deixou de vigorar na ordem jurídica portuguesa, não só porque caducou com o termo das leis de emergência que o ratificaram, como porque não pode subsistir autonomamente, por incompetência orgânica do Governo para a sua produção original.
  • Assim, todas as Resoluções do Conselho de Ministros que têm vindo a ser publicadas, por lhes faltar qualquer arrimo normativo, padecem de inconstitucionalidade orgânica, mas como também são violadoras de direitos fundamentais, faz-me considerá-las também como materialmente inconstitucionais
  • Acresce que, nessas Resoluções, tem vindo o Governo a criar normas inovatórias, o que não se mostra por lei abrangido no âmbito de Resoluções do Conselho de Ministros, mas tão-somente no de decretos-lei.
  • Os decretos-leis inserem-se na área legislativa do Governo, permitindo-lhe assim impor novas regras; isto é, fazer surgir no ordenamento jurídico, novas normas e conteúdos normativos (embora também possam, estes decretos-lei, ter conteúdo regulamentador).
  • Por outro lado, as Resoluções do Conselho de Ministros inserem-se na área administrativa do Governo e destinam-se a regulamentar o que de inovatório foi determinado por lei; isto é, regulam os conteúdos definidos através de decreto-lei, que se reportam a decisões político-normativas primárias.
  • No caso, as Resoluções de Conselho de Ministros, porque diplomas de carácter administrativo, não poderiam nem conter normas inovatórias na ordem jurídica diversas das estabelecidas por decreto-lei que visassem regulamentar nem, no caso, existia sequer, vigente na ordem jurídica, decreto-lei que legitimasse e carecesse de tal regulamentação.
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  • Estamos pois perante diplomas inconstitucionais (todas as ditas Resoluções), quer por violação do princípio da precedência da lei, decorrente designadamente dos nº 1, 6 e 7 do artigo 112º, da alínea c) do artigo 199º, e também por violação da alínea a) do nº 1 do artigo 198º, todos da Constituição da República Portuguesa (no que concerne ao uso de Resoluções não para prover à boa execução de leis, mas para criação, inovatória, de deveres e de restrições); quer por inconstitucionalidade orgânica (no que se refere à restrição de direitos, liberdades e garantias, por via governamental, em matéria para a qual a Constituição não lhe confere competência para tal), por violação do disposto nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 198º e alíneas c) e d) do artigo 161º, alínea b) do nº 1 do artigo 165º e ainda nº 1 do artigo 200º, todos da Constituição da República Portuguesa.

CONCLUSÃO: Todos os Decretos-Lei publicados e promulgados desde o fim do Estado de Emergência em Abril de 2021 e que têm como base no Decreto-Lei nº 10-A/2020, para além de serem todos organicamente inconstitucionais, “usam” como suporte um diploma que deixou de existir no ordenamento jurídico português.

Em consequência, o (novo) Decreto-Lei nº 30-E/2022 de 21 de Abril – que terminou com o uso de máscaras em alguns locais, procedendo à trigésima norma ou quadragésima alteração do artigo 13º B, (aquele artigo que estabelece quais os locais em que as máscaras são obrigatórias, para mais fácil compreensão do leitor) – tem como base um diploma que, desde finais de Abril de 2021, com o fim do Estado de Emergência, deixou de vigorar na nossa ordem jurídica.

João Pedro César Machado é advogado


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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