Estava a preparar um texto do Primeiro de Maio, a pensar no Elon Musk, enquanto dois comentadores debatiam na CNN Portugal os próximos passos nas relações com a Rússia.
Não conheço nenhum, nem os seus nomes me parecem aqui relevantes, mas senti magia nas palavras de ambos. Um dizia que tinha sido um erro a União Europeia ter criado uma dependência energética da Rússia. Acrescentou que “pensámos que, com as relações comerciais, a Rússia se tornaria numa democracia, mas estávamos errados. Temos que escolher parceiros mais fiáveis para o futuro”.
Há aqui uma verdade absoluta. Dependência energética é má, concordo. Seja de quem for. E pela quantidade de fichas que metemos nos carros eléctricos significa que, em princípio, continuamos sem perceber o essencial.
Mas gostei da parte onde perceberam que a democracia na Rússia afinal é fraquita. Quando distribuíamos Vistos Gold, a torto e a direito, pelos russos, correndo com os lisboetas para Corroios, o Kremlin era uma Assembleia Grega. Se a coisa avança e os chineses vêm em auxílio do Vladimir, ainda arriscamos ver algum quadro da EDP a dizer: “mas então, esta democracia não era das nossas?”
Melhor ainda foi a frase de “temos que ir atrás de parceiros mais confiáveis”. É que a União Europeia virou-se entretanto para a Arábia Saudita e para o Qatar. Alguém sabe que partido ganhou as últimas autárquicas em Doha? Fiquei com a sensação que tinha sido o Al-Mesmo-de-Sempre, mas não sigo com acuidade a política do Golfo Pérsico. Já em Riade julgo que o novo presidente da autarquia também não gosta de bicicletas: parece que o chicote que leva à cintura prende-se nos raios.
Gosto desta conversa das democracias à la carte. Os mujahidins foram, na década de 80, para a Time, uns freedom fighters – esta, por acaso, dava para aprender no Rambo III. Já no início do século XX passaram a terroristas.
A Ucrânia era, até há uns meses, um estado corrupto sem os mínimos para sequer se candidatar à União Europeia. Hoje, já é uma democracia sólida. A Rússia largou o comunismo há várias dezenas de anos – há quem defenda que já vai em quase um século –, mas é hoje o invasor comunista.
A Líbia era uma ditadura, e quando o petróleo passou para mãos francesas deixou de existir nas notícias, apesar de viver numa anarquia há uma década.
O que eu não percebo nestas análises é o porquê de termos que reescrever a História para justificar as nossas análises. Putin sempre foi um extremista que alimentou os fascistas europeus. Não é comunista, nunca foi. Não quer democracias. Terá sonhos imperialistas, acredito. E sempre foi isto. Quando sorria ao lado da Merkel, quando apertava a mão do Obama, ou quando fazia investimentos por toda a Europa e África.
Então, ninguém queria saber se Putin roubava os recursos do seu próprio país a favor dos oligarcas, desde que, lá está!, o gás corresse para o lado certo. Ninguém apontou o dedo, ninguém questionou a democracia.
Portanto, façam lá o favor, agora, de não serem uma cambada de hipócritas. Putin já foi isto na Geórgia, na Chechénia, na Crimeia. E ninguém quis saber. Não suporto virgens ofendidas consoante o drama do momento.
Há nesta guerra um invasor e um invadido. Não há dúvida disso. Mas façam-me o favor de não criarem uma realidade que nunca existiu, na Rússia ou na Ucrânia. Na RTP3, ouvi Inês Pedrosa afirmar que o Batalhão Azov não era uma milícia nazi. Quer dizer, para negarmos a narrativa de Putin – que a Ucrânia é governada por nazis, o que é obviamente falso –, caímos no outro extremo que é o de transformarmos nazis em freedom fighters. E eu já disse que não me choca ver nazis na defesa de um país. Em tempo de guerra não se limpam armas. Mas por favor, parem de pintar quadros alternativos. Torna-se insuportável.
A outra senhora que comentava na CNN Portugal dizia, por sua vez, que, como prioridade, tínhamos que avançar para o armamento dos países europeus. A ideia é a de nos prepararmos para o que aí vem. Já com a Suécia e a Finlândia no grupo e, a propósito, depois de caças russos terem passado aqui por casa hoje.
Pergunto a esta senhora, até apelando à sempre discutida igualdade entre os sexos: vestirá ela um colete, empunhará uma arma e virá, com todos os restantes, homens em idade de combater, afundar-se nas trincheiras e dar o corpo às balas?
Ouço todo o santo dia conversas de “vamos a eles” que me arrepiam, tal é a facilidade de lidar com balas, morteiros, mísseis e, quiçá, um ou outro cogumelo atómico. Eu não sei se andam a aprender história no Rambo III, ou como sobreviver a bombas nucleares com frigoríficos no Indiana Jones IV, mas acreditem que, neste caso, o filme não acaba no Air Force One com o Harrison Ford a esmurrar o árabe e a bradar, triunfantemente, get out of my plane. Será coisa para aleijar um pouco mais, garanto-vos.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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