A Ordem dos Médicos abriu mesmo um processo disciplinar a Jorge Amil Dias, presidente do Colégio da Especialidade de Pediatria, por delito de opinião, através de uma queixa de médicos com ligações à indústria farmacêutica. Amil Dias está obrigado a responder até ao final deste mês. Este é já o segundo processo disciplinar intentado contra este especialista pela Ordem dos Médicos durante o mandato de Miguel Guimarães. Sempre por delito de opinião.
A Ordem dos Médicos, dirigida pelo urologista Miguel Guimarães, decidiu mesmo dar provimento à queixa de 16 médicos – alguns dos quais com fortes ligações à indústria farmacêutica, como Filipe Froes, Carlos Robalo Cordeiro e Luís Varandas – contra Jorge Amil Dias, presidente do Colégio da Especialidade de Pediatria.
A queixa já foi “processada” pelo Conselho de Disciplina da Regional Sul da Ordem dos Médicos, presidida por Maria do Céu Machado, ex-presidente do Infarmed, e o PÁGINA UM teve conhecimento que a acusação foi já formulada com vista à aplicação de uma sanção. O pediatra Amil Dias tem até ao final deste mês para apresentar defesa.
O “crime” deste renomado especialista em gastroenterologia pediátrica é simples de explicar: durante a pandemia da covid-19, tomou posição pública, a título pessoal, ao considerar a vacinação de crianças “desproporcionada” e “desnecessária”, além de advogar a relevância da imunidade natural. Além disso, foi um dos subscritores de um abaixo-assinado que integrou quase uma centena de médicos e outros profissionais de saúde, alertando também para os riscos da vacinação num grupo etário de baixíssimo risco.
O processo disciplinar contra o presidente do Colégio de Especialidade de Pediatria – que não é escolhido, assim como nos outros colégios, nas mesmas eleições do bastonário, e beneficia de independência – resultou de uma carta-denúncia no início de Fevereiro, assinada por médicos afectos ao bastonário e à indústria farmacêuticas.
Neste grupo estão incluídos todos os membros do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 que solicitaram “a avaliação da conduta, por eventual infração disciplinar” de Amil Dias.
Miguel Guimarães, que se manifestou incomodado por pediatras contrariarem as suas posições de médico urologista a falar de assuntos de pediatria, anunciou mesmo que levaria o assunto a reunião do Conselho Nacional Executivo. O PÁGINA UM sabe, contudo, que nenhum efeito teria: aquele órgão da Ordem dos Médicos não tem poder para destituir membros de um Colégio da Especialidade.
Mais do que qualquer castigo relevante que possa atingir Jorge Amil Dias, este processo da Ordem dos Médicos revela o “clima de guerra” que alimenta as relações entre estes profissionais de saúde no mandato de Miguel Guimarães, que escancarou portas a procedimentos inquisitoriais por meros delitos de opinião, sobretudo com o advento da pandemia.
Miguel Guimarães tem sido, além disso, criticado internamente por não acatar os pareceres técnicos dos Colégios de Especialidade – e até de os esconder publicamente, razão pela qual o PÁGINA UM está a preparar um processo de intimação junto do Tribunal Administrativo –, optando antes por criar órgãos de consulta não-estatutários.
Um exemplo paradigmático foi o Gabinete de Crise contra a Covid-19, dirigido por Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais relações promíscuas com a indústria farmacêutica. Só este ano, Filipe Froes vai já em 18 mil euros recebidos deste sector, aproximando-se assim dos 400 mil euros declarados no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed desde 2013.
Embora Miguel Guimarães continue sem impor um código de conduta, optando por rodear-se de médicos com ligações à indústria farmacêutica – e a própria Ordem dos Médicos recebeu, no ano passado, cerca de 430 mil euros deste sector –, a sua veia punitiva não tem deixado de latejar contra quem não segue a sua opinião.
Além deste processo contra Amil Dias, a Ordem dos Médicos intentou, durante a pandemia, diversos processos a membros do denominado grupo Médicos pela Verdade. Até mesmo Fernando Nobre, fundador da AMI e ex-candidato à Presidência da República, foi alvo de um processo disciplinar com proposta de sanção, estando actualmente em fase de recurso.
Mas mesmo antes da pandemia, durante o “reinado” de Miguel Guimarães, a Ordem dos Médicos começou a querer punir profissionais que simplesmente davam a sua opinião. Um exemplo, apurou o PÁGINA UM, é a carta-aberta, publicada no jornal Público em Outubro de 2019, de um conjunto de 10 pediatras, entre os quais também Jorge Amil Dias, que criticava a então situação problemática das urgências pediátricas.