Numa democracia não se deve proibir de discutir nada. Mas, em abono da verdade, deve haver temas que teremos mesmo de descartar para um debate aos primeiros sinais. Logo ao lermos as primeiras linhas. À cabeça deve estar a possibilidade de regressarmos à ditadura, ao regime de um homem-só, salvífico, protector e redentor.
Ora, ler e aceitar a possibilidade de aprovar, a partir do anteprojecto conhecido, uma Lei de Protecção em Emergência de Saúde Pública (LPESP) é predispormo-nos a regressar à ditadura.
Nem sequer me apetece discutir demasiado as minudências e consequências deste anteprojecto – de onde se destaca a possibilidade de uma autoridade de saúde, a mando de um Governo, impôr restrições às liberdades individuais e colectivas, sob pena de prisão.
Apetece-me, sim, abordar conceitos, porque a democracia também são conceitos e princípios.
O dito anteprojecto da LPESP começa logo mal. Diz que tem “por objeto o conjunto de procedimentos e ações, regulamentares, científicas, organizativas e materiais, com a finalidade de conter, tratar e eliminar as causas e as consequências de doenças que tenham por efeito gerar elevado risco ou provocar danos severos na saúde pública”.
Note-se: inclui procedimentos científicos – os procedimentos da Ciência a serem regulamentados por legislação política. Começa bem, mesmo – ou melhor, começa mal.
Depois, seguimos para o artigo 2º, referente às definições. Ler aquilo, deveria logo levar-nos a devolver ao remetente estas desgraçadas páginas. Portanto, uma “emergência de saúde pública” é, para os doutos autores desta lamentável peça, apenas uma manta de retalhos sem indicadores, sem métricas, sem Ciência, acabando por ser definida como uma “ocorrência extraordinária, ou a ameaça iminente, de uma doença ou condição de saúde (…) que constitua um risco para a saúde pública ou com efeitos graves no funcionamento de sectores críticos da sociedade e da economia”?
Não admira que, desde as Descobertas, a Ciência nunca foi bem tratada em Portugal.
Ademais, o conceito de “pandemia” e “epidemia” – que constituem factores para desencadear a suposta “emergência de saúde pública”, a par, entre outros, do bioterrorismo, de acidentes radiológicos ou nucleares, e de uma enigmática “ocorrência ambiental” – seria risível, se não configurasse um enorme perigo. No anteprojecto surgem como sinónimos e definidos, simplesmente, como “surtos de doenças de natureza e localização disseminada”.
Minhas senhoras e meus senhores, aqui cabe tudo.
Um surto de gripe, num qualquer Inverno, pode transformar-se numa “emergência de saúde pública”. Até uma constipação.
Uma nova variante do SARS-CoV-2 – das centenas e centenas que já se formaram, e mais haverá – pode alcandorar-se, num estalar de dedos, a uma “ameaça iminente” e lá temos a “emergência de saúde pública”.
A própria possibilidade imprevista no tempo, mas previsível do ponto de vista histórico de surgir uma nova pandemia (tantas que já houve) pode sempre encaixar-se no conceito (não especificado) de “ameaça iminente”, e portanto pode accionar-se uma “emergência de saúde pública” hoje, amanhã, para a semana, quando o Governo estiver em queda de popularidade…
Os serviços secretos “desenterram” uma sempre secreta ameaça de bioterrorismo? Hélas, aqui vai uma redobrada “emergência de saúde pública”.
Um anúncio de “onda de calor” no Verão? Meta-se tudo dentro de casa e encerrem-se as praias.
Extraordinário é ver que, de acordo com o artigo 6º do tal anteprojecto, é o Governo que decreta a “ocorrência extraordinária”, e somente tem de apresentar os “elementos disponíveis” e uma “análise de risco”. E em que deve consistir isso? Nada se diz. A Doutora Graça Freitas há-de inventar qualquer coisa.
Sabendo como sabemos o obscurantismo da gestão da pandemia da covid-19 – com a recusa sistemática da Direcção-Geral da Saúde e do Infarmed, a par de uma “imprensa mansa” –, já se antevê que “elementos disponíveis” nos preparam, e que “análise de risco” nos mostrarão. Se for como os famosos e vergonhosos “relatórios de monitorização das linhas vermelhas”, estamos conversados.
Mas o mais espantoso neste anteprojecto – que deveria envergonhar qualquer pessoa com uma sinapse de pendor democrático – é que todas estas decisões políticas – apenas políticas – desencadeiam depois a constituição de um Conselho Científico. Pasmo absoluto: uma decisão que deveria ser baseada sobretudo em Ciência – ou previamente ratificada por cientistas –, acaba por ser uma decisão política de um Governo que depois vai procurar “cientistas” que digam ámen.
A fantochada anti-democrática chega ao ponto de determinar, no artigo 39º e seguintes, que o Conselho Científico, sendo um “órgão pluridisciplinar de apoio à decisão”, é nomeado imediatamente pelo Governo, sendo que seis dos nove membros são escolhidos pelo próprio primeiro-ministro. E outros três por entidades políticas (Assembleia da República e Governos Regionais). Coisa nunca vista em democracia.
Gente sem escrúpulos e ausentes de “coluna vertebral”, como uns Filipes Froes ou umas Raquéis Duarte, terão certamente, nestes Conselhos Científicos, a sinecura que ambicionam. E farão todos os fretes políticos que lhes solicitarem. Serão mais papistas do que o papa.
Aliás, serão cooperantes, até porque o anteprojecto não se esquece de vincar o direito a mordomias – leia-se “regime de compensação pelo exercício de missão” – determinadas por despacho do primeiro-ministro, e com a possibilidade de perpetuarem o posto, porque o dito Conselho Científico “mantém-se em funções até à declaração de cessação da emergência de saúde pública”.
Posto tudo isto, escalpelizar o articulado deste anteprojecto de “aborto antidemocrático” – que, em súmula, aplica aquilo que foi a gestão da pandemia – acaba por ser exercício desnecessário.
Isto não pode sequer chegar ao nível de uma discussão em Assembleia da República. E aprovar um diploma deste jaez equivale a Golpe de Estado; é accionar um mecanismo que pode transformar uma democracia numa ditadura quando o primeiro-ministro quiser.