Dizia a responsável de uma empresa de extracção de granito, em Pinhel, no distrito da Guarda, que as pessoas deviam pensar um pouco mais no interior. Há falta de mão-de-obra, todos fogem para o litoral.
É um facto, não há muito a dizer sobre isso. Há um êxodo, de décadas, para o litoral do país. Dizem-nos que a principal razão se prende com a concentração do mercado de trabalho nas cinturas de Porto e Lisboa.
Pessoalmente, acho que a escolha de deixar o interior não acaba nas oportunidades laborais, mas sim na ilusão de estarmos no sítio onde tudo acontece. Em Portugal, isso resume-se a Lisboa e, de quando em vez, ao Porto.
E digo ilusão porque, depois de ter mudado de casa 30 vezes, vivido em subúrbios bons e maus, vilas e cidades, capitais e periferias, passando ainda por uma ilha com apenas cinco mil habitantes, considero hoje que se vive melhor fora dos grandes centros.
Obras, trânsito, especulação imobiliária. Três coisas que gosto de evitar na minha vida, e que me fazem passar na minha Lisboa natal sempre em rotação para outro sítio qualquer.
Gosto de estar no centro de tudo…Londres, Paris, Nova Iorque, Lisboa, Berlim, Amsterdão, Tóquio, Istambul ou Rio de Janeiro estão entre os sítios onde me sinto melhor. Mas, no fim, no fim de tudo, gosto de regressar à paz do mar, do silêncio, das caras conhecidas e da ausência de conflitos na estrada. Gosto da guerra urbana por uns dias, não por uma vida.
O problema, pelo menos em Portugal, é como transformar o interior num sítio apelativo. Na Suécia é relativamente simples. Tanto as fábricas como as empresas ou serviços do Estado estão espalhadas pelo país. Claro que há mais oportunidades nas três principais cidades – Estocolmo, Gotemburgo e Malmö –, mas ninguém tem que sair da sua aldeia se não quiser. Há sempre emprego por perto.
Em Portugal não será bem assim. Empresas que abrem no interior são notícia. Casos raros. Exemplos de coragem e de quebra de barreiras. Mas poucos querem ir para lá viver. A qualidade de vida difere de análise para análise e, pessoalmente, sempre que tenho esta conversa com conhecidos o que mais ouço é “o que vou eu fazer numa aldeia do Alentejo?”.
Isto dito por quem vive na Arrentela, famosa pelos seus museus, restaurantes de grelhados, bailados, orquestras sinfónicas e arranha-céus com vista para o Monsanto. Quem nunca viu o Lago dos Cisnes na Torre da Marinha, que atire a primeira pedra.
Nos grandes centros urbanos, as deslocações tornaram-se um pesadelo – julgo que ouço a conversa da fila na segunda ponte do Feijó desde que nasci – e, com a especulação imparável no centro, a tendência é que os subúrbios não parem de receber gente, futuros clientes do caos no trânsito.
Ainda assim, quem quer deixar este inferno – para mim, isto é um cenário de Dante –, que hipótese de emprego tem no interior?
Esqueçamos a oferta cultural, as actividades, a ocupação dos tempos livres, ou tudo aquilo que achamos imperdível numa cidade. Que empregos esperam estas pessoas em Pinhel, por exemplo, nas palavras da senhora que se queixava ao jornalista de serviço?
Dizia ela que as pessoas normalmente só querem empregos de escritório, como em Lisboa. E que tinham que procurar também outras coisas, porque o interior precisava. Só a referência a um emprego de escritório como algo bom faz-me logo lembrar a bitola da minha avó, quando falava de uma neta ou filha de uma amiga qualquer na sua pequena aldeia do Alentejo: “Olha, ela até conseguiu um emprego muito bom. Num escritório. Não sei o que fazia, mas era num escritório”.
Eu sorrio sempre com as avaliações à vida feitas pela minha avó. Ela nasceu em 1927. Nas décadas seguintes, os escritórios estariam reservados para umas elites e, portanto, tudo aquilo faz sentido na cabeça dela. Já ouvir esse discurso numa empresária do granito neste século, enfim, ajuda um pouco a perceber a falta de mão-de-obra.
O problema, em última análise, é o “arame”, como lhe chamava Mário Soares. À pergunta sobre o nível salarial feita pela jornalista, respondeu a empresária, ligeiramente envergonhada: “Bom, isso depende do trabalhador”. Seguiu-se a insistência da entrevistadora, na tentativa de sacar um número: “Mas qual é a base? Está ao nível do salário mínimo?”. Aí a entrevistada já se soltou um pouco mais. “Sim, sim. Começam todos pelo salário mínimo, e depois vão evoluindo por aí fora”.
Ui…por aí fora. Eu imagino as reuniões com análises de produtividade, aumentos salariais correspondentes, e acordos com os sindicatos para as evoluções da carreira da extracção da pedra. Por outro lado, se começam todos pelo salário mínimo, lá se vai aquela narrativa do “depende do trabalhador”.
Portanto, em resumo, oferece-se um salário mínimo para acartar pedra a norte da Guarda. Progressões de carreira “por aí fora” e actividade ao ar livre – boa para evitar as bronquites causadas pelo ar condicionado dos escritórios. Garante-se um frio de rachar penicos durante os meses de Inverno, que só fortalece os ossos, e gasolina mais barata, uma vez que Espanha dista pouco mais de 30 quilómetros.
Visto assim, também não percebo a dificuldade em arranjar trabalhadores. Ou colaboradores, como se diz agora.
Eu gosto muito do interior de Portugal, mas infelizmente, tal como no litoral, o tecido empresarial ainda se rege pela exploração da força de trabalho, confundindo essa prática com o que, levianamente, costumam apelidar de “oferta de emprego”.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.