Poucas coisas têm o poder revigorante da morte em Portugal. Enfrentamos cada década a acreditar no milagre dos restauradores capilares, nas dietas detox à base de pepino ou nos cremes que nos tiram anos cravados em redor dos olhos. Procuramos em cada esquina de publicidade uma solução para uma versão melhor de nós próprios, quando, afinal, basta falecer.
Enquanto lia e ouvia os discursos sobre João Rendeiro, iniciados três exactos segundos após a notícia da sua morte, fabriquei na minha mente uma banda sonora para acompanhamento, à base de poesia urbana. Que é como quem diz azeite em garrafas MTV. Reza a nossa Jeninha no seu poema:
Don’t be fooled by the rocks that I got
I’m still, I’m still Jenny from the block
Used to have a little now I have a lot
No matter where I go I know where I came from.
Que é uma forma de dizer: atenção, sou muito, mas mesmo muito rica, possuo um pouco de tudo e valentes diamantes, mas reparem, nem me esqueci que cresci no Bronx. Sou no fundo uma de vós que não viaja em turística. De resto tudo igual. Continuo a mesma menina cheia de sonhos.
O poema, de riqueza gramatical dúbia, assenta como uma luva no nosso Rendeiro. Vejamos: até há poucos dias, o estimado João era um fugitivo à Justiça portuguesa.
Era um banqueiro que fizera fortuna lesando (vocabulário de luxo para “roubar”) milhares de pessoas e o Estado.
Era um magnata que apresentava livros sobre excelência em gestão enquanto o seu banco falia.
Era um homem que, durante a fuga, se deu ao desplante de aparecer numa entrevista na CNN Portugal para mostrar o quão inimputável era.
Mais de uma década depois de o Estado ter assumido o calote (portanto, um roubo a todos nós), muitos dos seis mil lesados ainda não receberam o dinheiro. Alguns morreram enquanto esperavam.
Na minha memória ficou a imagem de uma manifestação à porta do Banco Privado Português (BPP) no auge da derrocada onde, entre os manifestantes, chorava um emigrante português que, ao fim de 40 anos a trabalhar na Venezuela, tinha perdido as economias de uma vida.
Para quem vive longe de casa, há quase duas décadas, estas histórias tocam um pouco mais, porque se percebe bem o esforço feito e o que ali se perdeu.
Portanto, Rendeiro era, até há pouco, um criminoso que roubou pessoas e o país, enriquecendo com isso e vivendo uma vida de impunidade até Dezembro de 2021, altura em que foi apanhado na África do Sul.
Com a sua morte, tudo mudou. Um criminoso decidiu por termo à vida. Ou foi morto por outros numa das prisões mais violentas do mundo. Não se sabe. Partimos do princípio que morreu. E por aí começa a “nossa” simpatia.
Agora, João Rendeiro passou a ser o banqueiro que não nasceu rico; que veio de baixo e que, graças à sua genialidade, entrou na alta roda da banca. É, desde há uns dias, não um criminoso, mas alguém que, entre banqueiros, foi afinal o que roubou menos. Um renegado da classe e perseguido, porque, ao contrário de Salgado, não tinha segredos de Estado e partidos políticos no bolso. Devemos respeitar a sua morte, e há até quem condene o Estado Português pela morte numa prisão africana.
Como?!
Podem repetir?!
Foi o Estado Português que meteu o Rendeiro num jato privado para África do Sul? As únicas responsabilidades de Portugal neste caso, quase anedótico, foram a devolução do passaporte que permitiu a fuga e, numa primeira instância, a lentidão da Justiça que aguentou com 10 anos de recursos em tribunal.
Se isto continua, não tarda nada e chegaremos à conclusão de que Rendeiro era afinal o Robin Hood dos banqueiros, que roubava para dar aos pobres, nomeadamente aos da sua família.
Leio também, com alguma estupefacção, quem defenda que a família deve ficar fora das dívidas deixadas por João Rendeiro.
Como é que é?! A família que, durante anos, viveu no meio do luxo roubado aos outros, que beneficiou diretamente com o produto da vigarice, deve agora ser esquecida, fazer o luto e continuar a viver à custa da fortuna roubada? Mas anda tudo a ficar doido neste país?!
Façam o luto pela morte de um familiar como quiserem, mas cada cêntimo, deixado ou escondido, por João Rendeiro deve ser utilizado para indemnizar as seis mil famílias roubadas, e cujos sonhos foram destruídos pela ganância de um homem. O facto de os lesados do BPP não aparecerem nas capas dos jornais não significa que não existam, que não tenham família ou que não tenham ficado com as vidas de pernas para o ar.
É-me indiferente saber que Rendeiro seria o menos mau entre os banqueiros facínoras – um eufemismo sugerido pelo editor para evitar invocações a descendentes directos de certas pessoas de “má vida” – que nos roubaram. Desejo a todos igual fim: bens apreendidos até à última mesinha de cabeceira e vendidos para indemnizar lesados e o Estado; privados de liberdade até ao fim dos seus dias; e, se morreram durante a estadia na prisão, espero, como consolação final, que não seja pela cobardia de um suicídio.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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