Será difícil, nos tempos vindouros, encontrar peça jornalística mais infame. Ademais, complementada pelas balelas do mais mercantilista “vendedor da banha da cobra do país” que ostenta (ainda) uma cédula passada pela Ordem dos Médicos.
Este é um sinal dos tempos modernos, do Novo Normal: do conluio entre uma imprensa sem escrúpulos e vergonhosa, alicerçada em médicos que mandaram Hipócrates à merda e que se vendem por 29 dinheiros, porque até se comercializam abaixo da cotação de um Judas.
Hoje, pelas 10h15 horas, na edição online da revisa Visão Saúde, a jornalista Mariana Almeida Nogueira – que, pelo seu número elevado de carteira profissional (CP 8227), não deve ter tido ainda tempo de ler o Código Deontológico – escreve o mais descarado artigo de propaganda de marketing de que tenho memória. Ou melhor dizendo, publicidade pura e dura. E tenho (ainda) muito boa memória.
Para sustentar esta peça: as opiniões de um vendedor encartado pela Ordem dos Médicos, e não investigado a preceito pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS): o pneumologista Filipe Froes.
Qual o tema?
Já viram na imagem em cima: Paxlovid, um antiviral contra a covid-19 da farmacêutica Pfizer, apresentado logo no título como o “antiviral campeão de vendas nos EUA”, e que, acrescenta-se ainda, “pode [sempre a velha questão do pode, que pode significar o contrário, ou seja, pode não] pôr a salvo os doentes de risco”.
O lead não seria melhor escrito por uma agência de comunicação; e mal não lhe ficaria.
Mas a imprensa, e um(a) jornalista não pode ser uma agência de comunicação.
O texto da Visão Saúde, através de uma (suposta) jornalista encartada, não pode ter um lead assim: “E se existisse um antiviral capaz de complementar a ação da vacina e de reduzir a probabilidade de estes doentes de risco irem parar ao hospital, terem doença grave e morrerem? E existe mesmo. Chama-se Paxlovid, mas ainda não está disponível no nosso País, nem se sabe quando estará”.
Se fosse a Cristina Ferreira ou o Manuel Luís Goucha a dizer isto do Calcitrin, a gente até aguentava. Mas isto não é “banha da cobra”: é um medicamento que arrisca custar-nos, se levados por esta intrujice de vendedor, muitos milhões de euros sem préstimo. Na melhor das hipóteses.
De facto, toda esta (alegada) notícia é escrita como se fosse inexplicável o não-aproveitamento deste milagre da Pfizer.
Como se estivéssemos perante uma inexplicável negligência do Estado.
Não é o caso. Na verdade, a notícia é puro marketing para favorecer (sem aspas) uma farmacêutica, criando pressão mediática sobre o Governo e o Infarmed para a concretização de um negócio de milhões.
Mas, afinal, do que falamos quando falamos do Paxlovid – questão de pouca relevância para a Visão Saúde, mais preocupada em panfletar o fármaco milagroso da Pfizer?
O Paxlovid é, na verdade, uma combinação antiviral, de toma oral, constituída por dois medicamentos: o nirmatrelvir e o ritnonavir. O primeiro destes medicamentos já tinha sido criado em 2002 para combater o primeiro SARS, mas sem qualquer utilidade prática. Com o advento do SARS-CoV-2, a Pfizer começou então a testá-lo, em conjunto com outros. Apenas em Novembro do ano passado, a Pfizer anunciou um ensaio provisório envolvendo 774 pacientes com sintomas ainda leves ou moderados de covid-19, sobre os quais se avaliava o seu risco de internamento e morte. Em menos de um mês e meio, a farmacêutica apresentou então os resultados finais e, sem grandes demoras, em 16 de Fevereiro passado, saiu um artigo na revista científica New England Journal of Medicine.
Se acham estranha a rapidez da publicação deste artigo – assinado por investigadores da Pfizer (que admiração!) – numa revista científica, que dizer então da celeridade na autorização de comercialização pela Food and Drug Administration (FDA)?
Apenas 11 dias após a imprensa – que passou a constituir a fase crucial para convencer Governos e reguladores – ter divulgado os resultados obviamente extraordinários do Paxlovid, a Pfizer pediu autorização à FDA. Estávamos em 11 de Novembro do ano passado. No dia 22 de Dezembro, quase sem pestanejar, a FDA concedeu uma “autorização de uso de emergência”.
Nunca outro medicamento teve aprovação tão rápida. E isto não é uma boa notícia.
Israel seguiu logo os passos dos Estados Unidos, com uma autorização em 26 de Dezembro. E depois foi em cascata: Reino Unido em 31 de Dezembro e, por fim, a Agência Europeia do Medicamento (EMA) recomendou a autorização de comercialização condicional em 27 de Janeiro passado, deixando aos reguladores dos países europeus solicitar ou não mais testes.
A euforia com que o Paxlovid foi recebido nos últimos meses somente encontra paralelo com o anúncio das vacinas contra a covid-19. Lembram-se?! Daquelas que iriam ter uma eficácia de quase 100%, que concederiam imunidade de grupo e até maior protecção contra as infecções. Lembram-se? Pois bem, os resultados são bem mais modestos, e tanto assim que as autoridades de Saúde – incluindo a nossa DGS – os escondem para uma avaliação independente.
Mas para escoar o Paxlovid, a máquina de marketing da Pfizer ainda está mais oleada, mostrando uma “eficácia” extraordinária na perspectiva de obtenção dos máximos lucros no mais curto espaço de tempo.
De facto, sem uma justificação plausível – e muito menos transparente –, o preço de cada tratamento de cinco dias de Paxlovid nos Estados Unidos custará quase 530 dólares, ou seja, aproximadamente 510 euros. Este deverá ser o preço estabelecido para a Europa.
Os preços dos medicamentos já não reflectem, em grande parte dos casos, os custos de investimento, mas sim os previstos benefícios para a saúde individual e colectiva. Como o Plaxlovid está a ser “vendido” como um fármaco milagroso – apenas com base em ensaios clínicos realizados pela empresa e sem uma análise independente de longo prazo –, anunciando-se uma redução de 88% das hospitalizações, então a farmacêutica pode pedir um valor elevado desde que inferior ao custo de internamento dos doentes que seriam hospitalizados se o medicamento não existisse.
Mas isso é fazer futurologia. O Paxlovid é um medicamento que não mostrou ainda provas. Não justifica compras massivas.
Aliás, em epidemias, muitos medicamentos prometeram muito, e deram pouco, mas custaram muito. Tamiflu, há uma década, ou o Veklury (remdesivir), na pandemia da covid-19, surgem logo à lembrança. Milhões entregues de bandeja às farmacêuticas; resultados zero. Aliás, sobre o Tamiflu, da farmacêutica suíça Roche, corre ainda um processo judicial nos Estados Unidos por falsificação de dados que sobrestimaram efeitos benéficos.
Aliás, quem quiser entender como funcionam as estratégias de marketing farmacêutico em tempos de pandemia, basta ler o artigo científico de 2017 intitulado “Pharmaceutical lobbying and pandemic stockpiling of Tamiflu: a qualitative study of arguments and tactics”, no Journal of Public Health.
Mas a máquina da Pfizer quer mais do que vender aos países ricos. Sabe que pode maximizar o lucro se vender o Paxlovid aos países pobres com suposto preço de saldo. Até, supostamente, fica bem na fotografia. Não sejamos ingénuos: as margens de lucro serão muito menores, mas muitas mais vendas sempre dará mais lucro.
E assim, sem perda de tempo, vimos a Pfizer a querer inundar os países pobres com Paxlovid. No passado dia 17 de Março, o Pool de Patentes de Medicamentos, apoiado pelas Nações Unidas, assinou acordos com 35 fabricantes de medicamentos genéricos na Europa, Ásia e América Central e do Sul para fabricar este fármaco e fornecê-lo em 95 países mais pobres.
Dois dias mais tarde, os Centros Africanos de Controle e Prevenção de Doenças assinaram um memorando de entendimento com a Pfizer para fornecer Paxlovid com um preço de 25 euros.
No início de Maio, a Pfizer estimava conseguir vender 22 mil milhões de dólares, até final deste ano, de Paxlovid, aproximando-se das receitas da vacina Cominarty (32 mil milhões de dólares).
Obviamente, para esta estratégia ser bem-sucedida, além de uma imprensa ao seu serviço, a Pfizer precisa de pessoas como o Doutor Filipe Froes, um marketeer travestido de médico, que foi “chamado” para a peça da Visão Saúde.
O pneumologista – que já foi o maior “impingidor” de remdesivir, da Gilead, que nos custou 20 milhões de euros sem préstimo algum, a troco de uns bons milhares de euros – está agora vocacionado para vender – e aqui sem aspas – o Paxlovid da Pfizer, tal como virá, certamente em breve, a vender também o Molnupiravir da Merck Sharpe & Dohme (MSD). Ele não é esquisito.
Para que não se tenha dúvidas sobre a índole mercantilista de Filipe Froes – contra todas as regras éticas, deontológicas e até legais, tanto mais que é médico do SNS e consultor da DGS, integrando a equipa que define as terapêuticas anti-covid –, atente-se nas frases usadas pela (suposta) jornalista Mariana Almeida Nogueira (e mais ainda nas aspas que são declarações textuais deste pneumologista; os parêntesis rectos são meus):
1 – Segundo o pneumologista Filipe Froes, perante o que está a acontecer agora em Portugal, a aposta deveria ser feita, precisamente, nas medidas que diminuem o impacto da gravidade da doença, “nomeadamente, o reforço da vacinação e um acesso mais fácil a outras terapêuticas, que já existem noutros países, como os anticorpos monoclonais neutralizantes e os novos antivíricos, dos quais o Paxlovid é um deles”.
2 – Filipe Froes sublinha que “este tipo de medicamentos [novos antivíricos, como o Paxlovid] é muito bem vindo em Portugal e necessário nesta fase de combate à pandemia, que é diferente da fase inicial”.
3 – Segundo o médico, o fármaco [Paxlovid] “é essencial, sobretudo na altura em que nos encontramos, por contribuir significativamente na diminuição do impacto da gravidade e da mortalidade nas pessoas mais vulneráveis”.
4 – Perante a importância do Paxlovid, surge a dúvida: Por que razão não está ainda disponível no nosso País? Desde janeiro, que a DGS estará a preparar uma norma “para a utilização o mais racional e equitativa possível deste medicamento”, afirma Filipe Froes [que integra a equipa da DGS que define as terapêuticas anti-covid].
5 – O pneumologista considera o medicamento [Paxlovid] “essencial para controlar a circulação do vírus na comunidade e, sobretudo, para diminuir a gravidade da pandemia na população, sobretudo na mais vulnerável”.
Acrescento eu, por fim, apenas mais uma nota: corre na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) uma queixa contra mim e contra o PÁGINA UM accionada pelo presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), onde Froes tem um lugar de destaque. António Morais – o dito presidente, que também é consultor da DGS e do Infarmed, e não deveria ser por incompatibilidades legais – escreveu que “a SPP é uma associação sem fins lucrativos e não faz publicidade ou comércio de produtos farmacêuticos”, e que “a sua actividade é de natureza científica, recolhendo patrocínios e donativos para os seus objectivos estatutários, no escrupuloso cumprimento das normas em vigor”.
É tudo “gente séria”! Neste caso, as aspas é porque, obviamente, estou a ser irónico.