DOM CARLOS AZEVEDO, DELEGADO DO CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A CULTURA

‘As novas gerações não reconhecem no Cristianismo uma proposta de felicidade’

por Nuno André // Maio 26, 2022


Categoria: Entrevista P1

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É um dos três portugueses de destaque no Vaticano. Formalmente, é bispo titular de Belalos, mas essa é “mercê” simbólica, porque a sua função tem uma dimensão mundial: desde finais de 2011 ocupa as funções de delegado do Conselho Pontifício para a Cultura. Numa conversa reflexiva com o PÁGINA UM, na casa no Vaticano – daí a informalidade não ter “permitido” fotografias oficiais –, Dom Carlos Azevedo fala dos desafios mais marcantes da Igreja Católica, incluindo a perda de fiéis, das questões de moral e da ética nos tempos modernos, e também dos interesses pessoais (e críticos) que o mobilizam.

Leia o perfil de Dom Carlos Azevedo, AQUI.


Habitualmente, como são os seus dias aqui no Vaticano?

Primeiro, há a normalidade daquilo que é a vida de um padre: levantar-me, rezar… Entro às 8 horas no trabalho e às 13 e 30 tenho o intervalo do almoço. Três vezes por semana regresso ao trabalho às 15 horas e saio às 18 horas. Às quartas e sextas não há regresso. Esse é o ritmo. Durante as horas de trabalho, o que faço é responder às solicitações dos bens culturais da Igreja, que é o campo que me tenho destinado. Por exemplo, hoje um director de um coro queria vir marcar uma audiência para falar sobre uma determinada situação e respondi a esse e-mail indicando-lhe a pessoa com quem ele devia falar. Portanto, é preciso responder aos e-mails, preparar temas, estudar e ler aquilo que neste momento está em debate na questão dos bens culturais.

Entre os quais, a música…

Sim. Daí eu ter feito quatro congressos. A música é um sector muito importante, sobretudo depois da mudança de paradigma da liturgia, no vernáculo de cada língua; é preciso que haja compositores, pessoas preparadas para corresponder a uma qualidade musical que está um pouco decadente. Sobretudo no sul da Europa e na América Latina, é algo que exige reflexão. Fiz vários congressos porque tinham bastante sucesso, havia uma necessidade. Outra área de trabalho tem a ver com as igrejas vazias, e sobre o que faz em relação a isso, de modo a dar-lhes um outro uso, como tem acontecido no Canadá, Estados Unidos e Austrália. É um fenómeno que vai continuar a intensificar-se nos próximos anos. Muitas igrejas, em particular nas cidades, não têm fiéis. Não tendo fiéis, como é que irão sobreviver? É preciso encontrar soluções.

Dom Carlos Azevedo

Em certos países, há igrejas que já foram transformadas em hotéis, bares, restaurantes, discotecas…

Nós fizemos um documento de 16 páginas, que foi aprovado a nível das conferências episcopais europeias, e que deu bastante trabalho; está na internet e as pessoas podem ler. São linhas orientadoras para esta questão. Fala sobre o que se deve fazer, quais são as prioridades, como se deve conduzir o processo. Além da leitura do fenómeno, dá recomendações concretas.

Caso a Igreja Católica não consiga manter alguns dos seus templos, estes devem ser demolidos, vendidos?

Em primeiro lugar, a comunidade deve ser ouvida. A decisão compete ao bispo, mas depois existem as questões das confrarias e das ordens religiosas. Por isso, promovemos outro congresso apenas sobre as ordens religiosas, porque os seus bens culturais são isentos da intervenção do bispo. Naqueles que dependem do bispo, deve ouvir-se a comunidade, e isso não é só ouvir os católicos. Uma igreja num determinado local é um elemento de coesão, mesmo para os que não vão à missa. É um símbolo. Esquece-se muitas vezes essa dimensão, que deve ser respeitada. Depois, se a comunidade pode dar-lhe outra finalidade cultural ou social – é o ideal. Podem, por exemplo, transformá-las num centro de acolhimento ou, se o espaço for grande, em habitação social. Em Manhattan, estavam decididos a fazer um condomínio de luxo de uma igreja e graças à mobilização dos fiéis, foi transformada numa habitação social. Uma igreja pode ser transformada numa biblioteca ou num arquivo, numa sala de conferências ou de exposições, num atelier de artistas… Mas isso não dá dinheiro; portanto, a questão é se a comunidade consegue angariar fundos para manter essa nova instituição.

Palácio do Santo Ofício (Vaticano), residência de Dom Carlos Azevedo. Foto: ©Nuno André.

Estamos a falar de eliminar por completo o templo – mandar tudo abaixo.

Exacto, é “desconsagrado”. Usa-se esse termo, embora eu não concorde com ele. Deixa de ser um espaço litúrgico, pura e simplesmente. No Cristianismo não há sagrado e profano – tudo é chamado à santidade. A matéria, o cosmos, tudo! Há casos em que dá para manter uma parte da igreja como espaço litúrgico, como o presbitério, e a outra parte da igreja passa a ser de uso social e assim mantém-se as duas dimensões. Há igrejas na Alemanha e na França que têm essa polivalência, mas o bispo tem que determinar isso. Em último caso, há a hipótese de vender. Aconteceu isso com confrarias em que o bispo não tinha interferência. Nesses casos, é preciso “despir” a igreja de todos os elementos decorativos, para ficar apenas a arquitectura. Cada país terá as suas regras. É possível dar os elementos retirados de uma igreja para outra que não os tenha, ou para uma comunidade pobre… No caso do altar, não tendo uso, deve ser destruído, não deve transformar-se em mesa de bar, como se vê em fotografias que nos mandaram de uma igreja em Florença.

Por tudo aquilo que já publicou, pelas suas conferências e aulas, percebe-se ser um verdadeiro amigo da Cultura. Foi esta a razão – aliada à capacidade de comunicação – que o conduziu até ao Conselho Pontifício para a Cultura?

Certamente que o lugar que me foi dado aqui em Roma tem a ver com as minhas competências. Fazia parte da Comissão Episcopal da Cultura e Bens Culturais, tinha organizado exposições… Na maior exposição de arte religiosa em Portugal, no ano 2000, fui o comissário-geral. Também publiquei livros sobre iconografia. E depois a reflexão propriamente dita sobre a Cultura e a Arte Contemporânea, que é algo a que tentamos estar atentos. Não se trata só do património que já foi feito, mas também de continuarmos a produzir, seja no campo da Música, da Escultura, da Pintura, da Arquitectura, espaços e expressões artísticas de qualidade. Por exemplo, fui recentemente a um colóquio sobre a arte contemporânea numa Universidade de Belas Artes em Espanha, e ficaram muito admirados com o Vaticano, por termos uma visão sobre a Arte Contemporânea. Quando a Paula Rego fez uns quadros para o Museu da Presidência, eu fiz a sua leitura a pedido do Presidente Jorge Sampaio – isso até calou um bocadinho algumas críticas que havia, e que um ou outro jornal veiculou, sobre as pinturas da chamada “capela”, que é um pedaço de corredor que tem um altar. Ela foi convidada a fazer oito quadrinhos pequeninos sobre a vida de Maria, e eu depois fiz uma leitura. Claro que para fazer uma leitura de obras de grandes artistas, como a Paula Rego, é preciso, e eu dei-me ao trabalho, de ler livros, entrar no seu mundo. Temos de entender a gramática de cada artista para captar a sua mensagem.

Dom Carlos Azevedo com o Papa Francisco

Como adquiriu o gosto pela Cultura?

Penso que foi o seminário que me abriu horizontes. Alguns professores mais cativantes… Já no fim da sua vida, tive o Bernardo Xavier Coutinho, que foi uma figura que conheceu a História da Arte e tem uma obra clássica sobre o Camões. Depois, o Castro Meireles, que era outro professor, diretor do museu do seminário. A partir daí aproximei-me, perguntei, quis saber mais. Havia outro professor, também muito sensível à dimensão da Arte, que era o educador Arlindo Cunha. Esse gosto foi sendo alimentado por onde fui passando.  

Há uma figura que, certamente, fica para a História de Portugal e da Igreja, ainda que por vezes haja quem tente pô-lo numa gaveta do esquecimento: Dom António Ferreira Gomes, bispo de Portalegre e do Porto durante o Estado Novo. Que importância teve este homem na sua vida?

Isso tem a ver com outra dimensão, que é a do papel da Igreja na sociedade. Através do contacto com as suas homilias, a sua doutrinação, percebia-se que a dimensão profética da vida na Igreja deve continuar sempre em vida. Por exemplo, nestes últimos tempos, notámos a falta – na Igreja Ortodoxa Russa – da dimensão profética e crítica do poder. Ser livre do poder, de forma a chamar a atenção para os valores do Evangelho. Nós não estamos ao serviço do poder, estamos ao serviço de Jesus e do Evangelho. Aprendi com o Dom António Ferreira Gomes – que era não só um pensador profundo, mas também alguém que foi capaz de ser livre tanto antes como depois do 25 de Abril, criticando algumas medidas. Isso era algo que quase só ele tinha autoridade na Igreja: uma voz crítica em relação à maneira como foram tratados alguns membros da PIDE e à forma como estava a ser conduzida a democracia para uma falta de democracia. Eu publiquei, aliás, há tempos, um trabalho sobre as posições que António Ferreira Gomes teve nesses dois períodos: uma coerência evangélica mantida sempre com sentido crítico em relação à realidade que o circundava. Esse é o papel da Igreja. E isso é algo que me ficou na massa do sangue, devido ao contacto muito profundo. Depois de ele morrer, também tive a graça de ter arrumado os seus papéis e a correspondência, e acabei publicando uma série de escritos dele. Isso foi prolongado como presidente da Fundação SPES, quando Dom Manuel Martins fez 80 anos e me disse “agora ficas tu”; e fiquei como presidente da fundação até vir para cá [Roma].

Missa de canonização de novos santos no passado dia 15 de Maio na Praça de São Pedro. Foto: ©Nuno André.,

Ser-se irreverente e ousar pensar a realidade com sentido crítico é arriscado. É mais fácil seguir as regras e não criar agitação. Dom António Ferreira Gomes, sendo um exemplo de virtude, não seria expectável uma tentativa de abertura de processo para beatificação, por exemplo? Ou será que ao agitar o Estado e a Igreja, perdeu em ambos os lados?

Por admirarmos pessoas em certas vertentes, não devemos perder a capacidade de reconhecer outras vertentes em que elas não eram tão boas. Não devemos “adorar” cegamente certas figuras, também aqui devemos ter sentido crítico. Ele teve valor, entre outros aspectos, como pessoa que foi capaz de pagar com dez anos de exílio a sua posição eclesial e não posição política, como alguns fizeram crer. Claro que os comunistas ao verem um bispo a criticar o Estado Novo, se aproveitaram disso, mas isso não quer dizer que ele partisse dos ideais comunistas.

Alguns até o acusam de ter sido maçon. Há fundamento?

Evidentemente que não. O facto de ele desejar, como escreveu no seu testamento, ter esculpidos no seu túmulo a rosa e a cruz, fez alguns pensarem “cá está!”, mas não tem nada a ver. A rosa é o símbolo da civilização, e o grande símbolo do cristianismo é a cruz. Como ele próprio explicou, são símbolos da civilização do amor – é uma expressão que ele usou muitas vezes, de forma recorrente no final do seu episcopado.

Mudemo-nos para o Vaticano, onde aliás estamos a ter esta conversa. Diz-se que é o país do Mundo que tem mais fé porque quem por cá passa deixa ficar alguma. Ao fim de dez anos aqui, quanto já cá deixou?

Um cristão deve ter essa consciência crítica, porque a crença talvez se possa ir perdendo. A fé solidifica-se. Porque ao vermos testemunhos em que há uma ausência de evangelho, dá-nos vontade de sermos construtores desse evangelho, portanto solidifica-nos. Contudo, Roma tem também a vantagem de vermos o sentido católico da Igreja, de vermos aqui expressões diversas da mesma fé, não só na liturgia, mas nas expressões culturais, nas linguagens… e todos se sentem irmanados no mesmo Jesus, no mesmo Cristo. E essa experiência de universalidade da Igreja é uma experiência fundamental que Roma nos oferece.

Dom Carlos Azevedo durante uma homilia.

Estamos no Palácio do Santo Ofício. Por aqui passaram vários processos persecutórios, uns porventura mais justificados, outros menos. Nesse tempo, a Igreja parecia não permitir que as pessoas fossem muito além. Qual é hoje a posição do Vaticano sobre o “andamento” da Igreja? O Vaticano continua a impedir que se avance demasiado?

Vivemos um momento raro. Antigamente eram, geralmente, experiências inovadoras em alguns países ou em algumas dioceses que faziam abanar um pouco as estruturas centralizadas da Cúria Romana. Nos últimos anos, sobretudo a partir de João Paulo II, vemos o contrário. Basta olharmos para a Caminhada Sinodal. Hoje, é a Cúria, o Papa e os seus organismos, que estão a puxar pela Igreja para que seja capaz de ver que os tempos mudaram, que a Igreja também tem de mudar. Porque senão, não é capaz de ser credível para este tempo.

E que alterações são necessárias?

Muitas. Mas gostava de concluir a questão anterior. A nível pastoral devem ser, e sempre foram, os bispos que criam, inventam e renovam as formas de serviço à Igreja, que depois, Roma pode querer adoptar. A ousadia apostólica tem de estar nos pastores, não podem ficar à espera a ver se a Santa Sé aprova. Não é esse o modo de funcionar desde as comunidades iniciais. A Cúria e a diocese, por exemplo, são termos que vêm do Império Romano. Infelizmente, muita coisa do Império Romano passou para a Igreja, inclusive as vestes. Todas essas coisas, é preciso fazer uma certa limpeza. Alguns acham que já se limpou demais, mas eu acho que ainda se deve limpar mais… Não se trata da Igreja se limitar a adaptar à cultura contemporânea, pode, contudo, ser capaz de dialogar com a cultura contemporânea. Não significa perder a identidade, porque senão não há diálogo. Uma sinfonia funciona melhor quando cada instrumento toca o que deve tocar. Ter uma identidade forte, que não seja baseada em ideologia, mas no Evangelho.

Depreendo que tem preocupações pessoais como bispo. Pode apresentar-nos um exemplo?

Preocupa-me muito a posição de alguns, que apesar de serem minoria, fazem barulho e seduzem parte do clero mais jovem na ideia que voltar ao passado é o caminho do futuro. Pessoas psicologicamente inseguras aderem com facilidade a um conservadorismo doutrinal, a uma dedicação espiritualista e devocional, em vez de arriscar ir ao encontro da realidade actual e dialogar, servir os mais pobres e confusos, apresentando humildemente, mas firmemente a proposta cristã da felicidade.

Uma das 10 obras da autoria de Dom Carlos Azevedo, que costuma assinar como Carlos A. Moreira Azevedo

Falou na necessidade da Igreja se despir das vestes… Tivemos em Portugal um rei, D. João V, que achava que tudo se podia comprar, até o Céu. Sobre esse tempo chegou a publicar um artigo no qual referiu – o macaco do Papa!

Sim. Foi um núncio em Portugal que utilizou essa expressão numa carta a um secretário de Estado queixando-se ao ver como o patriarca copiava tudo o que acontecia em Roma. Parecia um macaco do Papa – daí a expressão schimia del papa. Queria comparar-se com a corte romana. As benesses, os privilégios, o facto de ter um patriarca… Uma vontade de afirmar-se na Europa graças a “pompas”. O que eu critico é: D. João V teria sido um grande monarca se tivesse investido na Cultura, na Educação, na formação científica, em vez de gastar rios de dinheiro em “Mafras” e em objectos de ouro que distribuía aos cardeais para conquistar as benesses que desejava para a sua Corte – mesmo sacrificando as dioceses. Portugal vivia para a Corte de Lisboa.

Pagou o suficiente para que ainda nos dias de hoje algumas dessas vantagens se mantenham – como o título de Cardeal para Lisboa.

O patriarca de Veneza já não é cardeal. Com Bento XVI, e com este Papa, já não foi nomeado cardeal. São títulos que são fruto de um império. De certa forma, havia um império comercial em Veneza, e um império ultramarino de Portugal, embora a origem do título de patriarca já tivesse nascido em 1640, quando a Espanha não deixava nomear bispos para Portugal. Nasceu na junta de teólogos, que o rei D. João IV reuniu, a ideia de transformar Portugal num patriarcado, e escolherem eles os bispos sem dizerem nada ao Papa. Isto porque não tínhamos bispos. Chegámos a não ter nenhum, porque os espanhóis ameaçavam se o Papa nomeasse bispos para Portugal. Foram ideias, que de facto nunca avançaram, mas estão escritas e conhecem-se.

Podemos concluir que o próximo bispo de Lisboa não será automaticamente escolhido para ser cardeal?

Esse é um compromisso a que se apela desde o tempo de D. João V, mas não podemos esquecer que houve um Concílio que alterou as regras. Por exemplo, a questão da resignação dos bispos aos 75 anos. Quando as pessoas permaneciam no lugar até ao fim da vida, o que vinha a seguir assumia o título. Já aconteceu, recentemente, com Paris, por exemplo. Enquanto o velho cardeal não tiver 80 anos, o novo bispo de Paris não é nomeado cardeal. É arcebispo de Paris, mas não cardeal. Porquê? Porque tem lugar na eleição do Papa, e era um pouco estranho que uma cidade tivesse dois votos na eleição do Papa. Por isso, só quando um atinge 80 anos e já não vota, é que o sucessor é nomeado cardeal destas cidades mais importantes. Ao escolher uma cidade por país, seria Lisboa. Mas este Papa tem rompido muito com isso: se uma pessoa dá um testemunho de vida evangélica, mesmo estando numa diocese “perdida” no mapa, merece o título.

Guarda suíça. Foto: ©Nuno André.,

A Igreja sempre teve e continua a ter, um peso substancial na forma como as pessoas pensam, na forma como vivem e como julgam a sua própria vida. Parece-lhe que poderá haver espaço para mudar a forma de pensar sobre assuntos que causam polémica e divisão, como, por exemplo, os temas da sexualidade? Há pessoas que sofrem permanentemente porque parece que o que é bom, ou engorda ou é pecado [risos].

A expressão da perda da juventude, penso que é um problema gravíssimo e que a Igreja é chamada a enfrentar com grande verdade, porque nós vamos às celebrações e não vemos jovens. Desertaram. Sabe-se que há muitos que fazem o Crisma para poderem casar pela Igreja. Aqueles que ainda querem, porque esse número também vai diminuir. A inserção na vida da Igreja é algo que se está a perder continuamente, e não é só em Portugal e Espanha; acontece na Alemanha, na Polónia, em Itália…

Nestes últimos anos tem havido uma queda bastante acentuada…

Sim. Tudo isso é fruto de as novas gerações não reconhecem no Cristianismo uma proposta de felicidade – e isso passa, certamente, por uma liberdade em relação à sua sexualidade, ao poder, pela relação da Igreja com a Economia e com a Política. Nos grandes canais de comunicação social, a imagem que ainda passa é de uma grande repressão a nível da sexualidade. Felizmente, este Papa tem uma linguagem muito acessível e as intervenções dele têm eco nos media porque têm a ver com a vida das pessoas. Dizer que o prazer é bom e que os casais devem exprimir o seu amor, são dimensões conhecidas por quem está por dentro da Igreja e da actual moralidade. Mas a grande maioria tem uma imagem negativa, do que é proibido e do que não se pode. Bento XVI chegou a dizer que o Cristianismo é um código de felicidade – é essa mensagem que tem de passar, mas, para ser passada, temos de alterar alguns arquétipos mentais que estão a perturbar e que dão azo a todas as maleitas que a Igreja está a sofrer, de perversões e tudo isso. Porque não se educou uma energia que é própria do ser humano, e que deve ser vivida harmonica e equilibradamente, como é a sexualidade. E não negada.

Praça de São Pedro, na passada semana. Foto: ©Nuno André.,

Conhecemos a expressão “santificarmo-nos no trabalho”. Será que algum dia haverá uma expressão “santificarmo-nos durante o acto sexual”? Através do sexo, podemos chegar a Deus?

Eu dizia há bocado que tudo é santo. Um pai e uma mãe falam de Deus a um filho(a) tanto quando falam do Evangelho da catequese como quando o beijam. A ternura, como o Papa tantas vezes fala, é um sinal da presença de Deus. É um sinal da profunda Humanidade. E isso abre caminho a que as pessoas sejam mais descontraídas a expressarem a sua afectividade. Isso certamente implica uma Educação, porque é uma dimensão que tem uma energia fantástica, que por isso deve ser canalizada. Ou seja, ter balizas. Mas não reprimir nem oprimir, senão depois é como uma panela de pressão, e torna-se perigoso. Penso que aí é que há um caminho a fazer, de relativizar a maldade. A um certo momento, quando se dizia pecado, parecia que era apenas em referência à sexualidade, mas há pecados muito mais graves. As novas gerações ainda não apanharam esses novos ventos. Não estão habituadas ao sacrifício, porque foram sempre muito facilitadas pelos pais, e quando têm a primeira adversidade parece que o mundo vai acabar. E isso é uma fragilidade afectiva enorme das novas gerações. Não só porque vivem muito dependentes do computador, do telemóvel; e o seu mundo de relações é muito circunscrito. Transmitir aos mais novos a importância do bem-comum é garantia de futuro, porque o futuro exige diálogo intercultural e inter-religioso se quisermos uma Humanidade nova. Não podemos ficar fechados num catolicismo de muros.

Uma sexualidade reprimida pode levar a desvios, nomeadamente à pedofilia que, aliás, sabemos que existe entre os membros do clero. Pode haver pedófilos que são professores, actores, jornalistas, jogadores de futebol… De que forma a Igreja pode aproveitar este momento para mostrar de forma exemplar como se pode conduzir um processo de averiguação de um mal, que afinal, está presente em tantos sectores?

Sim, essa fragilidade afectiva e perversão tem sido facilitada nos últimos tempos por uma falta de valores. Passa a “valer tudo”. Alguns chegaram a dizer, quando se começou a falar muito disto, que até os padres [fazem isto], e a defenderem que se “liberalizasse” para todos, como a droga. Há épocas onde esses dramas e atitudes são mais provocadas pelas circunstâncias do ambiente, e outras em que são provocadas pela falta de uma orientação e de uma educação sexual. Há que, para além de cuidar das vítimas, precaver para que uma nova geração de padres possa ser educada de uma forma mais sadia, de modo a não dar azo a perversões.

Parece-lhe que em Portugal os processos relacionados com a pedofilia têm sido bem conduzidos pela Igreja portuguesa?

Eu acho que esta abertura que a Europa começou a ter, de criar uma comissão para clarificar o assunto, fomenta a transparência, o que é fundamental. É preciso, primeiro, fazer-se uma “radiografia” da situação para termos o tratamento adequado. Está a ser feito.

Dom Carlos Azevedo com o actual Papa emérito Bento XVI

Realizou muitos congressos, conferências e escreveu vários livros e está bem de saúde. Como é que olha para o seu futuro?

Quis sempre servir na Igreja no espaço que me é dado, que nuns momentos é mais a nível social, noutros mais cultural. Aqui [no Vaticano] tinha tempo, por isso dediquei-me a servir a Igreja e o meu país, publicando algo que possa ser necessário para o conhecimento da nossa História eclesial. É essa atitude que mantenho, enquanto Deus me der saúde – servir da forma que posso o que me pedem. Ainda que eu considere que tenho capacidades que são melhores para um determinado campo do que para outro. Tomar essas opções é algo que cabe a quem está nos lugares de decisão.

Poder-se-á afirmar que é um bispo e um pensador irreverente?

Eu não me considero um pensador. Considero-me um padre que é livre, isso sim. E que, por vezes, pode ousar, seja com uma terminologia ou uma intervenção… Creio que a Igreja deve intervir! Defendia isso como presidente da Comissão do Constitucional Social, naqueles anos economicamente críticos de 2008. Ao criar um fundo social que distribuiu mais de um milhão de euros… Aliás, fui gerindo esse fundo pelas várias dioceses com projectos que apareciam. Dávamos dinheiro para projectos que criassem emprego, que ajudassem as pessoas. Também poderia servir para ajudar directamente pessoas em grande aflição, mas tentava-se sobretudo que fosse para projectos que criassem emprego.

Quando reza e comunica com Deus, que homem está ali de joelhos a rezar?

É o homem frágil, pecador, que diz “eis-me aqui”, com atitude de serviço. Como quem diz “eis-me aqui, o que queres de mim?”. É isso que também acaba por espelhar-se no dia-a-dia, nas minhas actividades. Parte de uma atitude que nasce na oração. Isso é muito interessante e fundamental. Nós podemos ter uns planos e tal, mas nunca somos só nós a fazer as coisas, é o Espírito Santo em nós e devemos seguir sempre a sua voz. O espírito de Jesus e de amor universal do Pai continua a estar presente na vida, e a apelar-nos a que estejamos disponíveis para aquilo que é necessário, e que a Igreja e a sociedade nos pedem. A lutar pelos ideais – ainda que estes sejam maiores do que as nossas pernas, e condicionados pelos que nos permitem. Portanto, é como me posiciono: “eis-me aqui, ao serviço”.

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