Devo dizer-vos que 10 minutos antes de começar a escrever, não fazia ideia se Uvalde era marca de sumo de uva comercializada em baldes ou, em alternativa, uma aldeia perdida nos Andes.
Dez minutos volvidos já sei várias coisas. Por exemplo, sei que na página 13, de entre as 192 que compõem o Orçamento Público, disponibilizado online, a pequena cidade rural de Uvalde, que afinal fica no Estado norte-americano do Texas, deposita na sua polícia 40% do seu argent.
Pensando na frequência destas tragédias de mass shooting nos Estados Unidos, o país com mais armamento per capita do Mundo, lembro-me de dois argumentos que ouço recorrentemente. Primeiro, o clássico direito “à defesa pessoal”. Melhor, as tragédias que se evitariam se todos estivéssemos armados – sim, este argumento existe. Depois, e ainda mais elaborado, como mais espingardas podem contribuir para a paz.
Só por má vontade é que não percebemos, todos, as vantagens de nos armarmos até aos dentes.
Um amigo, acérrimo defensor da Segunda Emenda, diz-me que pela lógica do pensamento (anti-arma) também devemos proibir os carros porque há acidentes rodoviários. É uma forma simpática de comparar a necessidade de nos deslocarmos com a vontade de vivermos entre saloons e botas de espora. E digo simpática para não ofender ninguém.
Curiosamente, a tecnologia evolui no sentido de evitar acidentes (no ar, terra e mar), e as leis, essas malvadas, contribuem para retirar da estrada os condutores que não estejam habilitados para tal.
Mas as armas? Qual é a necessidade de um civil andar armado?
Dizem-me que é uma forma de nos protegermos. Ora… a escola em Uvalde, onde os alunos podiam assistir às aulas com armas de fogo na cintura, não se conseguiu proteger. Nem sequer a cidade, que gasta 40% do seu orçamento na polícia, chegou para prevenir um ataque destes.
Porquê? Porque malucos existem em todo o lado, certo? Certo. Certíssimo. Mas se o acesso às armas não estiver ao nível do acesso ao lego, em princípio os danos devem ser menores.
A Constituição americana consagra a violência – é um facto, e por mais mortes choradas, não há poder político que se atravesse no caminho do fortíssimo lobby do armamento. O mesmo que prolifera internamente, e que, em cada década, necessita de um empurrão “em busca da paz” para exportar o seu produto.
Quem não se lembra do súbito interesse em defender a democracia e a liberdade no Kuwait, nos idos de 90? Democracia num sítio sem eleições é sempre um dos meus jargões preferidos. Ou as intervenções na Sérvia, Síria, Iraque, Afeganistão ou Líbia?
Uma receita tantas e tantas vezes repetida.
Começa com um povo sofredor dominado por um tirano. Segue-se o armamento dos rebeldes. Mais tarde, aparece a cavalaria, que parte aquilo tudo. No fim, escolhe-se um novo presidente, e chamam-se os Joes que tomam conta da reconstrução do quintal. É sempre a lucrar, da primeira bala ao último bloco de cimento. Como brinde, há ainda o facto de, normal e curiosamente, os povos sofredores adormecerem à sombra de poços de petróleo.
No caminho para o Kuwait e Iraque, por exemplo, as tropas fizeram escala na Palestina, mas não encontraram povo algum a precisar de ajuda. Passam despercebidos, de facto. Quem nunca esteve 70 anos sem ver as notícias, que atire a primeira pedra.
Da escola no Texas para o Donbass, o negócio segue a bom ritmo. A Ucrânia fornece a carne, os Estados Unidos as armas. Os russos oferecem a possibilidade de se procurar um mundo melhor, e a União Europeia, entre material velho de guerra, disponibiliza também um rombo nos seus orçamentos, um aumento do custo de vida para os seus cidadãos e uma factura mais alta com a energia comprada no outro lado do Atlântico.
Dou voltas e mais voltas à cabeça e não vejo ninguém no continente europeu que beneficie com a continuação da guerra na Ucrânia. Ninguém. Absolutamente ninguém.
Mas não consigo deixar de pensar que, entre Texas e Kiev, as desgraças humanas trazem lucro uma e outra vez aos mesmos de sempre.
E para que não fiquem dúvidas a que me refiro, serei claro com as palavras.
Putin é o maior responsável do início desta guerra e o primeiro a ter que ir parar a Haia. Não é, contudo, no dia de hoje, o único interessado na sua continuação. Os Estados Unidos já assumiram que pretendem desgastar a Rússia, e, como tal, o seu interesse tornou-se oficial. Por outro lado, não precisam de nos dizer que as exportações aumentaram que, em princípio, conseguimos fazer as contas sozinhos.
Voltarei, porventura ou má-ventura dos leitores, ao tema em próximo artigo, com os números da nova dupla de marretas: Rogeiro e Milhazes.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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