CRÓNICAS DE UM OFÍCIO SANTO

Pedras para que vos quero

por Nuno André // Maio 30, 2022


Categoria: Opinião

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Viajei, por razões profissionais e académicas, até Roma – a Cidade Eterna; e a propósito de uma conversa casual, dei por mim a pensar na conservação das antigas estradas do Império Romano. Os milhares de quilómetros de construção, que se estenderam da capital ao “resto do mundo”, são de uma qualidade excecional. Tanto assim que a robustez dos materiais e a técnica dos mestres garantiu que essas infraestruturas chegassem muitas vezes quase intactas aos nossos dias.

O tempo e o dinheiro investidos na construção destas vias ofereceram uma importante vantagem à circulação de pessoas e de bens. Infelizmente, com o passar do tempo, esquecemo-nos do significado das ideias de qualidade, de robustez, de mestres. Por isso, já não construímos como antigamente.

É ainda curioso saber que nem todas as pedras destas estradas se mantiveram no lugar. Na verdade, algumas acabaram por ser arrancadas do solo para depois servir na edificação de castelos durante o período medieval. Imagine-se estes pedaços de rocha com características humanas, e facilmente conseguimos vislumbrar o orgulho que poderiam sentir ao deixar de viver no chão – a servir de sustento a pés, patas e rodas – para passar a viver ao alto, integrando muros imponentes.

Quem visita Roma, encontra vestígios de construções milenares espalhadas por toda a cidade. Ano após ano, construção em cima de construção, a cidade evoluiu, mas, ainda assim, as colunas, os capitéis, as paredes ou as abóbodas permaneceram nos mesmos lugares – e resistiram ao tempo, aos terramotos, às guerras, ao vandalismo.

Ainda que a cristianização do Império tenha levado a uma transfiguração da obra imperial – por exemplo, a conversão dos antigos templos em igrejas –, a ideia romana manteve-se na expressão do eterno, do grandioso, do imponente. Cristianizou-se os romanos e romanizou-se os cristãos…

Enquanto pensava em ideias para escrever esta crónica, tive o privilégio de ser embalado pelo som das águas refrescantes das fontes, dos chafarizes, do rio e, se não fosse o descuido na limpeza urbana, tinha-me sentido num pequeno paraíso. Em cada esquina, um monumento, uma relíquia – cada uma mais antiga e mais bonita do que a anterior. Nas ruas ouvimos o tom alto e exagerado com que se fala localmente. Gesticulam muito. Buzinam por tudo e por nada. A condução é caótica. Talvez, por isso, seja difícil imaginar esta cidade fechada ao turismo durante o recolher obrigatório.

Nesta cidade ainda se sente o medo e a exigência trazidos pela pandemia. Ainda se pede certificados e para se andar mascarados…

Na rua, a arte urbana ganhou um novo tema. Numa velha parede de esquina, alguém desenhou um quadro perfeitamente integrado. Nele a alusão à “Vacina Santa”, mesmo ao lado do Vaticano: são os sinais dos tempos.

Mas, voltemos às pedras. Não há dúvida de que o ser humano é capaz de criar obras geniais com elas. Não me refiro exclusivamente às basílicas ou aos edifícios em geral.  Refiro-me também à criação de pequenos pormenores artísticos que eternizam ideias e ideais – a vida, a morte, a eternidade, a esperança, a justiça, a fé, a caridade.

Dentro das igrejas existem túmulos lindíssimos, que tentam perpetuar na morte aquilo que não foi alcançado na vida. Parece-me oportuno, hoje, mais do que nunca, entender uma simples ideia: não passamos de pequenas pedras brutas a precisar de um bom desbaste…

Dos castelos medievais, hoje, o que nos mostram são apenas réplicas – Guimarães, São Jorge, Almourol… –, ao contrário das estradas, dos aquedutos, das pontes romanas.

O declínio do Império Romano coincidiu com o desinvestimento na circulação de bens e de pessoas. A estagnação matou. Não aprendemos.


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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