O PÁGINA UM foi ver como as farmacêuticas entraram na vida da comunicação social portuguesa através de parcerias comerciais que são executadas por jornalistas sem que os leitores percebam que se trata de eventos com cobertura mediática condicionada. A Lei da Imprensa e o Estatuto dos Jornalistas não permitem este tipo de parcerias, mas a Entidade Reguladora para a Comunicação Social e a Comissão da Carteira Profissional “assobiam para o ar”. Comecemos pelo Grupo Impresa.
O semanário Expresso e o canal televisivo SIC Notícias têm estado a intensificar, como nunca visto, as ligações comerciais com a indústria farmacêutica, usando jornalistas para cobrir eventos pagos.
O fenómeno, que colide com a Lei da Imprensa e o Estatuto do Jornalista – por influir na liberdade editorial e aproveitar jornalistas para cumprimento de contratos comerciais –, iniciou-se em pequenos passos ainda antes da pandemia, mas está em franco crescimento. Só no mês passado, o PÁGINA UM detectou cerca de uma dezena de iniciativas destes dois órgãos de comunicação social do Grupo Impresa em operações de marketing de seis farmacêuticas.
A vantagem das farmacêuticas nesta “cooperação” – em que os órgãos de comunicação social funcionam como media partners, bem pagos, embora os montantes estejam no “segredo dos deuses” por não serem públicos – é tripla: mesmo que a factura para as farmacêuticas seja bem superior (em comparação com uma organização por meios próprios), garante-se uma cobertura mediática favorável (que nem sempre se obteria sem estas parcerias) e consegue-se, por outro lado, agregar mais facilmente um conjunto de figuras de relevo ou decisores políticos como convidados para os eventos.
Por outro, os eventos apresentados enganosamente como parcerias ou associações – quando na realidade se está perante simples prestação de serviços de comunicação – funcionam como um “endorsement”, uma recomendação de uma marca, neste caso uma farmacêutica, por um órgão de comunicação social e pelos seus jornalistas, o que constitui um “selo de qualidade” perante o público que ignora a natureza desses contratos.
Um pouco como um shampoo que seja falado pelo Cristiano Ronaldo sem se saber que ele recebe dinheiro por isso, e as suas “falas” são combinadas.
Existe eventualmente outra vantagem potencial: a dependência financeira por este tipo de contratos, num período crucial de negócios para muitas farmacêuticas, pode condicionar análises mais críticas ao sector por parte dos jornalistas. E travar uma cobertura profissional, isenta e rigorosa.
Embora esta dependência financeira não seja exclusiva do Expresso e da SIC Notícias – ou do Grupo Impresa –, o PÁGINA UM detectou que, apenas durante Maio passado, o semanário fundado por Pinto Balsemão associou-se, para a organização de eventos pagos, pontuais ou de médio prazo, à ViiV Healthcare (uma joint venture da Pfizer e da GlaxosmithKline), Bial (através da Fundação Bial), Sanofi, Gilead, GlaxoSmithKline e Novartis.
Em todos os casos, os eventos tiveram transmissão online, geralmente com a moderação de num jornalista do Expresso ou da SIC Notícias, e cobertura mediática com artigos de jornalistas acreditados, sobretudo nas edições online mas também, por vezes, na edição em papel. Pelo menos dois jornalistas com carteira profissional escreveram artigos encomendados desta forma: Francisco de Almeida Fernandes (TP 7706) e Tiago Oliveira (TP 6278).
No caso dos eventos que envolvem conferências, o PÁGINA UM detectou a participação activa, como moderadores, dos jornalistas Marta Atalaya (TP 2502) e Bernardo Ferrão (TP 3906).
Os textos no semanário do Grupo Impresa costumam ser integrados numa secção denominada “Projetos Expresso”, mas sem qualquer menção de integrar conteúdos patrocinados nem existe qualquer opção gráfica que distinga esses artigos das outras notícias eventualmente não-pagas.
O último desses eventos neste polémico género de parceria Expresso-farmacêuticas foi uma conferência na passada terça-feira “em torno dos desafios no diagnóstico e tratamento do VIH/SIDA”, que constituiu o pontapé de saída do projecto Horizonte 2020, que se prolongará por 18 meses.
Nesta primeira conferência foram convidados políticos de vários partidos, entre os quais Ricardo Baptista Leite (PSD) e Maria Antónia Almeida Santos (PS), com a moderação da jornalista Marta Atalaya. A cobertura mediática foi assegurada pelo jornalista Francisco de Almeida Fernandes, que também trabalha para uma empresa de comunicação (Mad Brain).
A Angelini Pharma, por sua vez, conseguiu convencer o Expresso a ser media partner, com uma contrapartida monetária, para organizar a 13ª edição do Angelini University Award, que teve o impacte da covid-19 nos doentes crónicos como prioridade. Mais uma vez, o evento teve cobertura mediática do Expresso através do jornalista Francisco de Almeida Fernandes.
Por sua vez, o evento pago pela Fundação Bial em Maio passado enquadra-se em outros já desenvolvidos desde o início deste ano, um dos quais contou com a presença do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. Também aqui a notícia do mais recente evento, resultante do compromisso como media partner do Expresso, foi publicada na edição online de 20 de Maio passado, e escrita, mais uma vez, pelo jornalista Francisco de Almeida Fernandes.
No caso da Sanofi, cuja cobertura mediática tem sido feita sobretudo pelo jornalista Tiago Oliveira, tem incidido num projecto de médio prazo denominado “Doenças que marcam”, que tem tido também a participação, como mestra-de-cerimónia da jornalista Marta Atalaya.
A Sanofi tem, aliás, reforçado a ligação comercial e jornalística com o Grupo Impresa. Um dos eventos mais relevantes desta parceria comercial foi a organização, em Março passado, da conferência Flu Summit 2022. A vacina da gripe é uma das áreas de grande interesse comercial desta farmacêutica francesa.
Para se ter ideia dos montantes envolvidos nestas iniciativas, saliente-se que, no âmbito da Flu Summit 2022, e consultando o Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, dois dos convidados para este evento – os pneumologistas Filipe Froes e António Morais – receberam da Sanofi, pela sua presença, 2.889 e 1.595 euros, respectivamente. O segundo esteve, na verdade, em representação da Sociedade Portuguesa de Pneumologia.
Apesar desta dependência financeira de alguns dos oradores (pagos pela Sanofi), o Expresso fez a cobertura mediática do evento, que foi moderado pelo jornalista da SIC Bernardo Ferrão.
Quanto à Gilead, o evento de Maio passado, organizado pelo Expresso, e com cobertura mediática do jornalista Francisco de Almeida Fernandes, foi dedicado à divulgação do Programa Gilead Génese. No entanto, as ligações entre esta farmacêutica norte-americana têm-se aprofundado desde o ano passado, sempre com uma cobertura mediática bastante favorável.
Recorde-se que a Gilead comercializa o polémico antiviral remdesivir, sob a forma comercial Veklury, mas nunca as páginas do Expresso fizeram eco dos problemas deste fármaco, que custou 20 milhões de euros ao Estado. Das poucas vezes que o Expresso referiu aquele fármaco foi sempre de forma favorável, com a “defesa” a ser feita, entre outros, pelo pneumologista Filipe Froes, que é simultaneamente consultor da Gilead e da Direcção-Geral da Saúde.
Por sua vez, para a GlaxoSmithKline (GSK), o Expresso multiplicou-se, no mês passado, na organização de diversos eventos sobre doenças raras, onde os interesses comerciais das farmacêuticas são bastante significativos, sobretudo porque os preços de venda são elevados e altamente comparticipados pelo Estado.
Num dos mais recentes eventos, realizado em 10 de Maio, com a participação do presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, foi mesmo abordada a necessidade de acelerar a aprovação de medicamentos inovadores (que, basicamente, não têm ainda garantias de segurança e eficácia). A cobertura mediática destes debates pagos pela GSK foi realizada, como habitualmente, pelo jornalista Francisco de Almeida Fernandes.
Por fim, a relação comercial da Novartis – e neste caso, de igual modo, para a Médis – com o Expresso e também com a SIC Notícias, é já mais antiga, nascida em 2019, e envolve a “sensibilização” para os problemas oncológicos.
No entanto, nos últimos meses têm intensificado as iniciativas, a última das quais em 27 de Maio. Contudo, o Expresso faz notícias como se não estivessem suportadas num acordo de patrocínio, e o site da iniciativa é apresentado como sendo um “projecto editorial da SIC Notícias”.
O PÁGINA UM questionou o director editorial do Expresso, João Vieira Pereira, sobre se concordava com esta estratégia comercial do Grupo Impresa; se considerava que a denominação “Projetos Expresso” é suficientemente clara aos olhos dos leitores de que se trata, na verdade, de artigos pagos; e se tinha conhecimento de que os artigos de índole comercial (por estarem consubstanciados em contrato comercial) estão a ser escritos com a participação de jornalistas acreditados pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista. Não houve resposta.