CRÓNICAS DE UM OFÍCIO SANTO

Os humanos de oito pernas

por Nuno André // Junho 3, 2022


Categoria: Opinião

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Foi descoberto recentemente o manuscrito primordial de Clavis Prophetarum, ou Chave dos Profetas, umas das obras magnas do Padre António Vieira, que se julgava perdido para sempre. Ainda que possamos pensar na sorte da investigadora, que quase por mero acaso o encontrou na Biblioteca da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, a verdade é que a sorte, se assim lhe quisermos chamar, esteve do lado do manuscrito. Muitos o manusearam, folhearam, leram e por ignorância, por incompetência, ou simplesmente por indiferença, não lhe atribuíram o respectivo valor.

Manuscrito original de Clovis Prophetarum. Foto: © Arquivo Pontifícia Universidade Gregoriana.

Porque já quase tudo foi dito sobre a descoberta, considero oportuno partilhar com os leitores uma ou outra ideia sobre aquilo que Vieira nos deixou. E que continua de grande actualidade.

Recordemos, por exemplo, o Sermão de Santo António aos peixes. Se a memória não me falha, e se a Internet não me engana, diz-nos este jesuíta: “E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (…) o dito polvo é o maior traidor do mar.” Compara assim o religioso a aparência do polvo com a serenidade e confiança que nos deve fazer passar um monge.

Padre António Vieira (1608-1697)

O conhecido olhar de António Vieira sobre da Humanidade acaba por estar permanentemente na ordem do dia, tanto hoje como há mais de 350 anos. Vivendo ele para o absoluto, não viveu para o poder. Deu murros na mesa, defendeu os fracos, os diferentes, foi um verdadeiro advogado da Humanidade.

Como visionário, esteve à frente do seu tempo, razão pela qual remou sempre, e incansavelmente, contra a maré, enfrentando maiorias. A irreverência isolou-o de tal forma que acabou por parecer, aos olhos dos outros homens, mais homem do que santo. É pena. Foi pena.

Voltando ao polvo. Também eu tenho razões de queixa deste desgraçado cefalópode. A verdade é que, quando o colocamos na panela, nunca sabemos com o que podemos contar. A maneira como mirra chega a parecer vingança. E pode mesmo ser – pela maldade que lhe fizemos.

Sabemos que a capacidade do polvo em mudar de cor, ao assumir os tons do ambiente, faz dele um dos mais hábeis predadores e, uma vez mais, em tudo se assemelha à forma de ser e de actuar do ser humano. Não é que tenhamos predadores à nossa volta, que nos queiram comer. Desses, de uma forma geral, já nós nos fomos libertando, mas a constante lei do mais apto torna-nos, muitas vezes, verdadeiros “polvos terrestres”. Aprendemos tais manhas, desde tenra idade, que ficamos perigosos muito célere, e o pior de tudo é que não paramos de adquirir novas capacidades e esquemas até à velhice. Com isto, sobrevivemos. Não vivemos. Essa parece ser, aliás, a questão que nos leva a actuar como predadores.

Apesar de tudo isto, ou sobretudo por isto, convém relembrar a inteligência dos polvos, que os mergulhadores relatam em momentos de interação. Nessas situações, eles vêem-nos como seres inteligentes, e como tal, assim gostam de brincar com humanos. Eles não nos olham, durante esses contactos, nem como presas nem como predadores. Por isso, um mergulhador que não queira caçar um polvo pode vê-lo, e sentir, que tem ali um bom companheiro para momentos de descontração. E não vê no polvo nem fúria nem medo.

brown octopus

Na verdade, esta analogia serve para dizer que não somos maus por uma nossa natureza, tal como mau este molusco não é. Defendemo-nos simplesmente daquilo que nos assusta ou que nos tenta atacar. Quando formos capazes de perder o medo e nos tornarmos mais seguros de nós próprios, talvez esteja dado o passo significativo no que toca aos valores e integridade.

Afinal, não é o polvo que se apresenta como monge, nós é que nos apresentamos, muitas vezes, como polvos.


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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