Recensão: A cozinha inglesa de Miss Eliza

Receitas apetitosas como poemas

por Paulo Moreiras // Junho 4, 2022


Categoria: Cultura

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Título

A cozinha inglesa de Miss Eliza

Autora

ANNABEL ABBS (tradução: Elsa T. S. Vieira)

Editora (Edição)

Edições ASA (Abril de 2022)

Cotação

15/20

Recensão

A todos aqueles que costumam cozinhar com frequência já sucedeu encontrar uma ou outra receita a que, seguramente, faltava certo ingrediente ou alguma etapa na confecção, quando não uma formulação atabalhoada.

Foi também o que constatou Eliza Acton (1799-1859) nos manuais de cozinha britânicos do início de oitocentos. Em face de tais discrepâncias decidiu escrever um manual de cozinha intitulado Modern Cookery (1845), e é essa aventura que Annabel Abbs nos narra neste romance.

Logo no Prefácio somos alertados de que esta se trata de "uma obra de ficção baseada nos poucos factos conhecidos sobre a vida de Eliza Acton, autora de poesia e pioneira da escrita culinária, e da sua assistente, Ann Kirby".

Escrito ao longo de dez anos, entre 1835 e 1845, o manual que Eliza escreveu é, ainda hoje, considerado como um dos melhores livros de culinária britânicos e um bestseller no seu tempo, com inúmeras edições ao longo dos anos. O que é obra, pois a jovem Eliza Acton, então com 36 anos, antes de embarcar nesta culinária odisseia, não sabia cozinhar rigorosamente nada.

Tudo começa depois de Eliza publicar um livro de poemas. O editor diz-lhe que "a poesia não é coisa para senhoras", propondo-lhe antes que escrevesse novelas, pois "são muito populares junto das jovens", ou um livro de culinária. "Se sabe escrever poemas, também sabe escrever receitas." E lança-lhe um desafio: "Traga-me um livro de culinária tão bonito e elegante como os seus poemas."

Rapidamente, Eliza constata que os manuais de culinária existentes apresentavam "uma prosa desastrada e estrangulada", com uma gramática fraca, receitas pouco apetitosas, textos flácidos, entre outros desastres. "Alguns autores mal sabem escrever. As medidas são imprecisas, o fraseado é deselegante. Falta-lhes clareza e as próprias receitas não são nada apetitosas."

Perante todo este cenário, Eliza decide escrever um manual de cozinha com requinte literário, comparando o processo de seguir uma receita com o de escrever um poema. "Porque não hão de as artes culinárias incluir poesia? Porque é que um livro de receitas não pode ser uma coisa bela?", questiona-se a novel cozinheira. "Tal como um poema, uma receita deve ser clara, precisa e ordenada."

E é assim, com este desígnio em mente, que Eliza vai descobrindo as maravilhas da culinária, acolitada por Ann Kirby, a jovem criada, que lhe serve de fonte de inspiração por possuir "um palato capaz de distinguir os mais subtis dos sabores".

Ao longo do processo de composição do manual de cozinha, os leitores vão mergulhando igualmente nos mundos atribulados e trágicos das personagens, com todos os seus dramas e, principalmente, os seus segredos. Tanto Eliza como Ann escondem algo uma da outra e que aos poucos, conforme a sua amizade se vai reforçando,  vão sendo revelados.

Todos os capítulos têm como título uma referência gastronómica e há uma grande dose de sensualidade e deleite em algumas das descrições culinárias feitas pelas personagens, principalmente Eliza, e nas sensações que certas iguarias provocam no palato e no corpo.

No capítulo XIX, por exemplo, encontramos Arroz Doce no título. Consultando a edição original do Modern Cuisine nele encontramos uma receita de Arroz Doce à Portuguesa (p. 496): "This is quite the best sweet preparation of rice that we have ever eaten, and it is a very favourite dish in Portugal, whence the receipt was derived."

Ao longo da narrativa, encontram-se várias outras referências a produtos de origem portuguesa, como um Bolo de Madeira, confeccionado com vinho da Madeira, ou bastas alusões ao vinho do Porto, seja como bebida seja como ingrediente para inúmeras confecções culinárias, demonstrando a importância que os vinhos licorosos portugueses possuíam em terras de Sua Majestade.

Por fim, nota para um ponto menos positivo.

Embora a história seja contada por duas vozes distintas, a de Eliza e a de Ann, ambas parecem ter o mesmo tom. Annabel Abbs não soube dar dimensões diferentes à voz que conta o seu ponto de vista, tanto mais que as duas personagens são provenientes de estratos sociais diferentes e com níveis de educação bem díspares. Pormenor que esturrica um pouco este romance curioso e bem disposto que, tal como uma boa iguaria, proporciona bons momentos de leitura.

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