Recensão: Volodymyr Zelensky: biografia

Um improvável e absurdo herói

por Pedro Almeida Vieira // Junho 7, 2022


Categoria: Cultura

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Título

Volodymyr Zelensky: biografia

Autor

SERGII RUDENKO (tradução: Elena Luchyna)

Editora (Edição)

Casa das Letras (Maio de 2022)

Cotação 

13/20

Recensão

Num ápice, poucas semanas após a invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin, uma figura internacional eclodiu não apenas pelas televisões, rádios, jornais e revistas – e, claro, pelas redes sociais e Internet em geral –, mas também nos escaparates das livrarias: Volodymyr Zelensky.

Transformado em “três pazadas” num Winston Churchill do século XXI, o antigo comediante ucraniano mereceu, em apenas dois meses, o interesse dos dois principais grupos editoriais portugueses: a Leya (através da Casa das Letras), que publicou Volodymyr Zelensky: biografia, do ucraniano Sergii Rudenko, e a Porto Editora (através da Ideias de Ler), que publicou Zelensky: o herói improvável, dos jornalistas australianos (originários do Leste Europeu) Andrew L. Urban e Chris Mcleod. Está anunciada ainda a edição pela Esfera dos Livros, para este mês, de Volodymyr Zelensky: na cabeça de um herói, dos jornalistas franceses Régis Genté e Stéphane Siohan.

No estrangeiro ainda há mais. Muitos mais. Para aí uma dezena de obras com o presidente ucraniano como foco central. Existe mesmo uma colecção – já vai em três volumes – intitulada War speeches, de Volodymyr Zelensky: dois com os discursos de Fevereiro e Março deste ano, e outro com os de Abril. Presume-se que esteja a caminho o de Maio, e a ser escrito o de Junho…

Na Amazon já está em pré-lançamento, para O ainda longínquo Outubro, o livro Volodymyr Zelensky in his own words, de Lisa Rogak e Daisy Gibbons. 

A apresentação é muito sui generis, caracterizando o momento mediático que se vive: “Zelensky é o herói que não sabíamos que precisávamos – ou talvez precisássemos. Neste momento, o mundo quer saber mais sobre o heróico e inspirador presidente da Ucrânia, e a melhor maneira de fazer isso será com Volodymyr Zelensky in His Own Words, um extenso livro de citações que abrange as palavras e opiniões de Zelensky sobre um amplo espectro de questões – de guerra e paz a mudanças climáticas e direitos LGBTQ. Os leitores poderão abrir o livro em qualquer página e ver onde Zelensky está. Dada a sua vida anterior como comediante e actor mais famoso da Ucrânia, há muitas citações que fornecem uma imagem mais subtil desse homem que encantou e inspirou pessoas ao redor do Mundo.” Zelensky é o novo Messias.

Que não haja dúvida sobre a barbárie que se vive na Ucrânia com a invasão  da Rússia de Putin, nem sobre a corajosa postura de Volodymyr Zelensky, aos 44 anos de idade, e depois de um passado profissional ligado ao entretenimento. No entanto, algo não bate certo quando o marketing subverte completamente a realidade – ou, neste caso, o conteúdo de uma pretensa biografia, que, por vezes, nem é.

Com efeito, no caso de Volodymir Zelensky: biografia, que se decidiu ler, estamos perante uma honesta, embora não extraordinária, análise política do sexto presidente da Ucrânia – que, até certo ponto, é independente, embora o  jornalista ucraniano Sergii Rudenko, compreensivelmente, se deixe arrastar pela emoção quando aborda a invasão perpetrada Rússia –, mas que não encaixa em quase nada daquilo que a editora releva na badana: 

“Este livro apresenta Zelensky começando como um presidente pela paz e tornando-se um presidente de guerra. Em episódios que destacam a subida ao poder de Zelensky da forma mais honesta e aberta quanto possível, e sem retoques, lemos sobre o triunfo de Zelensky em 2019, mas também sobre as suas diversas derrotas no Olimpo político. A história do homem que, sem qualquer experiência política ou conhecimento relevante, prometeu aos ucranianos mudar o seu estado. Um homem com a confiança de 13,5 milhões de eleitores. Uma pessoa que compreendeu que confiança implica responsabilidade. O homem que aceitou o desafio que é Vladimir Putin, tornando-se chefe do Estado ucraniano neste período difícil. Por último, o livro fala sobre a mudança de opinião pública – mas não apenas pública – de Zelensky, passando de um presidente com poucos sucessos e um mau ranking para um presidente a protetor do seu povo, defendendo não só a Ucrânia, mas igualmente a liberdade da Europa.”

Porém, ao discorrer pelo livro de Sergii Rudenko – claramente escrito, em grande medida, antes da invasão russa –, somos confrontados com um político saído literalmente de filme – o Servo do Povo – e que nada mudou na política ucraniana desde a sua independência da União Soviética: corrupção, nepotismo, criação de oligarquias e uma exploração do povo sem contemplações. 

Os primeiros capítulos desta obra de Rudenko mostram, de uma forma bem expressiva, a improvável ascensão de Zelensky assente no seu mediatismo, mas também numa máquina de propaganda sustentada por oligarcas e por amigos de índole questionável. A sua impreparação para o cargo trespassa em todas as páginas. O nepotismo, idem. Os contorcionismos e golpes palacianos, também.

Na verdade, ao longo da leitura deste livro – que chega a ser penosa, não pela qualidade da escrita mas pelos episódios relatados que nos incomoda por vergonha alheia –, mais do que suscitar simpatia por Zelensky ou empatia pelo povo ucraniano, surge um estado de incredulidade. 

Sem esquecer os horrores cometidos pela Rússia contra o povo da Ucrânia – e sabendo-se que com Putin e o seu regime, este é, porventura, o país menos recomendável para se viver em liberdade na Europa –, Zelensky não pode ser apresentado como um modelo para a Democracia. Chega a ser ofensivo querer casar Zelensky com um democrata. Este livro de Rudenko prova-o.

Por fim, um problema estrutural desta obra – em certa medida, compreensível –, é a ausência de informação que permita um melhor enquadramento dos leitores no contexto político da Ucrânia. Assim, aspectos da política interna e dos políticos ucranianos referenciados por Sergii Rudenko dificilmente são compreendidos pelo leitor português. Acresce que os (estranhos) nomes dos intervenientes na cena política não ajudam.

Mas isso, como se defende, constitui um problema compreensível: afinal, não fosse a guerra e ninguém em Portugal estaria interessado em publicar um ensaio jornalístico sobre um presidente da Ucrânia. Nem um, quanto mais três livros.

Por outro lado, com uma estrutura em 38 capítulos, não cronológicos, mas incidindo sobretudo no período a partir de 2019, Rudenko não consegue sair de um registo demasiado jornalístico, e demasiado especulativo. Alguns capítulos são simples crónicas. Pouco ou nada é dito sobre os contornos políticos que acabariam por desencadear a invasão da Ucrânia. Em muitas partes falta-se substância, ou pelo menos substância para que um não-ucraniano entenda tudo na perfeição.

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