Recensão: Divisão da alegria

Navegando pelas irregularidades

por Luís Serpa // Junho 12, 2022


Categoria: Cultura

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Título

Divisão da alegria

Autora

RAQUEL NOBRE GUERRA

Editora (Edição)

Tinta da China (Março de 2022)

Cotação

14/20

Recensão

Quando comecei a navegar nas águas frias e tempestuosas do norte de França e do Canal da Mancha costumávamos justificar tão masoquista exercício dizendo "um bom dia de mar vale nove maus". (Hoje sei que não é inteiramente verdade. Não vale nove maus, vale muitos mais. Vale uma vida. Mas isso são outras águas.)

Pensava nisto enquanto lia Divisão da alegria, o último livro de Raquel Nobre Guerra e – diz-nos Pedro Mexia, na pequena nota introdutória – o mais "extenso e expansivo" da autora. Não sei como eram os outros, mas este é extremamente irregular.

Tem poemas de uma beleza siderante; muitos outros ficam aquém. Naturalmente, resisti à tentação de estabelecer um ratio: talvez a matemática seja poesia, mas a poesia não é de certeza matemática. Temos portanto – na minha opinião, claro – de nos ficar por esta espécie de baloiço que ora nos faz deparar com versos como:

Decompor trecho a trecho a regra do dia
os mesmos gestos, os mesmos objectos
roupa larga, o rocegar do verso longo
eu e tu, palavras soltas por aí

as papoilas vão tornando raras quase supérfluas
como se estivessem prontas para o estio

...

(in Palavras Soltas, Pág. 15)

[Os livros já não têm errata. Penso, mas não tenho a certeza, que falta um pronome a seguir a "vão": As papoilas vão-se tornando raras, etc.]

Umas páginas mais à frente (A tua segunda consciência, pág 22):

 ...
que o espaço aberto que percorres com os dedos
é o meu corpo tocado pela tua segunda consciência
...

Versos como estes descrevem, vestem e transformam simultaneamente a realidade e o olhar da autora. Comparem-se com:

Todo o pensamento é uma Vénus de Milo quando
três pernas do cavalo azul
de porcelana chinesas se desfizeram em pó
espalhando o rasto frágil que a beleza traz
...
(In Paris num caderno, pág. 56)

Esta última estrofe resume aquele que é para mim o pecado mortal da maioria da poesia portuguesa actual: imagens opacas, "intraduzíveis", digitais no sentido em que ou aderimos a elas ou não aderimos. O surrealismo deixou uma pesada herança ou, se preferirem um termo náutico, uma longa esteira na poesia portuguesa. Esteira essa que só agora, hesitantemente, começa a apagar-se. Já era tempo.

Isto dito, penso que o livro deve ser comprado e lido. Os bons poemas desequilibram claramente a balança para o lado "bom". Há realmente momentos de prazer extático, há uma relação amorosa com as palavras,

Desculpa se sou bruta com as palavras
porque as amo violentamente
e tendo a despi-las e carregá-las de frutos
de verniz conforme a estação
...
(in Frutos de verniz, pág. 42)

A poesia de Raquel Nobre Guerra excele no último capítulo do livro, Oito poemas para o pai: as imagens tornam-se menos herméticas, o amor que as inspirou transparece e transforma-se numa poesia sensível, capaz de fazer o leitor identificar-se com essa ternura e – talvez seja esta a função da poesia – torná-la sua.

(Nota: na página 107, in Envelope a dizer: lambi para fechar – "Espero que os dias longos sejam ideiais para ti também / apesar da clara vitória dos maus". Impossível não pensar noutros ratios.)

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