Volto com alguma regularidade ao drama do Ruanda em 1994. Não é que o quotidiano não me preencha a quota de amarguras, mas há, naquele genocídio, uma lição sobre maiorias que, parece-me, vamos esquecendo com o passar das décadas.
Não quero de forma alguma estabelecer comparações com um período da História de pura barbárie, embora queira aí recuar para pensar na saturação ou no rastilho que deu origem a uma das maiores catástrofes humanitárias do século XX.
Resumindo uma história complexa: durante gerações, a minoria Tutsi foi utilizada pelos colonos (belgas) para controlar a restante população, maioritariamente Hutu. Uma situação de algum privilégio e acesso aos lugares de poder que se arrastou por décadas, até que a maioria se revoltou.
Não há nada que justifique o que ali aconteceu, e hoje o Ruanda não é propriamente um sítio melhor. Os Tutsies recuperaram o poder na guerra civil e, entre eleições fraudulentas e suspeitas de afastamento de opositores, Paul Kagame, antigo líder militar, está há mais de 20 anos na liderança do país.
Mas a chacina aconteceu. Mais de meio milhão de pessoas foram assassinadas, e o desespero por condições de vida foram o rastilho. É aqui que nos quero transportar para a realidade europeia e, em especial, para a portuguesa.
Bem sei que todos estes dramas nos passam um pouco ao lado, e dentro do continente europeu estamos habituados a alguma estabilidade. Mas agora, depois de dois anos e meio de absoluta loucura governativa com a covid-19, uma guerra que se alastrou – convém lembrar que a zona Este da Ucrânia está ao som de morteiros desde 2014 – , uma inflação a chegar aos dois dígitos e juros mais altos decididos pelo BCE, é justo de afirmar que boa parte da população portuguesa está em dificuldades.
Num programa económico, não me lembro agora em que canal, explicava um analista, de forma pedagógica e em tom de conselho à população, o que poderiam fazer para aguentar o embate esperado dos aumentos das taxas de juro decididas pelo BCE (agora em Julho).
Em média, para créditos com spread actual a rondar os 1,5% e com os aumentos anunciados por Christine Lagarde, estima-se que por cada 150.000 euros de empréstimo, a prestação suba cerca de 100 euros.
Não sendo economista, tento perceber, junto de quem sabe, o porquê destas medidas. Para mim, um simples e anónimo português, a pergunta que importa é esta: com um salário médio de 1.000 euros e 85% a levarem para casa menos de 900 euros líquidos, como é que se aguentam aumentos de centenas nas prestações bancárias?
É esta a matemática simples que eu tento compreender.
Normalmente levo com teorias do género “são as leias básicas da Economia, pá!”. Quais? Bom… se a inflação aumenta, tem de se aumentar também o juro para que fique menos dinheiro disponível para o consumo e, dessa forma, se reduza a inflação. Mas, pergunta minha, se a inflação (preços dos bens de consumo) aumenta, as pessoas não consomem menos porque perdem poder de compra?
Em teoria sim, diz-me quem percebe disto, mas em Portugal está-se a verificar um fenómeno contrário, porque as pessoas acumularam algum dinheiro durante a pandemia.
Por outro lado, acrescenta quem foi à escola ouvir falar disto, o banco não pode receber menos do que te emprestou e hoje o dinheiro vale menos. A forma de compensar é com a subida dos juros.
Volto ao meu bloco de notas e abro as estatísticas do Instituto Nacional de Estatística (INE). Mesmo que os portugueses tenham gastado menos daqueles fabulosos 900 euros mensais ao longo de um ou dois anos, quanto é que poderão ter poupado? O suficiente para umas férias? Mais jantares com bifes proibidos pela Jonet? Ou estão todos a comprar iates no Mónaco?
De que nível de poupança estamos a falar? Com este nível de rendimentos não me parece que sejam sacos e mais sacos de arame, como lhe chamava Mário Soares.
E sobre o dinheiro valer menos hoje, e a banca ter que ser compensada, confesso que começo a sentir algum fumo no emissor do meu transístor por onde passa a corrente. É que, vam’lá a ver, a banca portuguesa recebe dinheiro desviado dos impostos há mais de uma década. Pega nesse dinheiro e empresta-nos com juro. Portanto, nós pagamos duas vezes a mesma coisa, ou três, se contarmos com os prémios de gestão ao fim do ano. E agora, numa altura de óbvio embate, somos nós que voltamos a meter a pele.
Eu compreendo o cenário de catástrofe: dois anos de pandemia, com o Governo a endividar-se para pagar confinamentos, layoffs e até vacinas em barda a farmacêuticas que, lembrem-se, nunca abriram as patentes. Portanto, a factura da covid-19 – depois dos lucros pornográficos dos laboratórios, farmacêuticas e empresas de bens de primeira necessidade/entregas online –, chegou e será entregue a quem as costuma pagar: os trabalhadores por conta de outrem.
Em cima disto, metemos a guerra na Ucrânia e mais 2% do Orçamento de Estado desviado para políticas belicistas. Somamos o mercado liberal de combustíveis – que, afectado ou não pelo petróleo russo, aproveita para recuperar o que não ganhou quando todos estavam em casa. Aumento esse, no caso português, mesmo com a redução de impostos, o que é algo de extraordinariamente abjecto, e a confirmação do cartel petrolífero que usa e abusa da lei que lhes dá poder para decidirem tudo, sem qualquer regulação governamental.
Ah… e quase que me esquecia: ainda temos que ter em conta a total desregulação do mercado imobiliário e o elevado endividamento das famílias portuguesas. Isto porque, claro, insistem em não viver debaixo da ponte, o que também não se compreende.
Portanto, chegados aqui, e com esta bomba-relógio em ponto rebuçado, dizem-nos que temos de aumentar ainda mais o custo de vida. Porquê? Porque é uma lei da Economia, estúpidos. Mesmo sabendo que oito em cada 10 famílias podem vir a passar ainda por mais dificuldades, e muitos terão de entregar casas, mas, caso não percebam, é para o vosso bem.
Dou comigo a pensar nisto, e a ver o comum português que trabalha de sol a sol para pagar contas, enquanto acumula aquela fortuna que lhe dá direito a 15 dias em Agosto na Quarteira.
Que culpa tem este gajo dos confinamentos? Ou das ajudas à banca? Ou da invasão da Ucrânia? Ou das sanções impostas pela União Europeia? Algum de nós foi tido ou achado nesta merda que andamos a viver desde 2020? Não.
O nosso papel é abdicar de liberdades básicas em nome não se sabe bem de quê, ou, em alternativa, pagar a conta.
Temos que andar a reboque e a empobrecer por decisões de uma minoria, algumas comprovadamente erradas e prejudiciais.
Bem sei que, em democracia, elegemos outros para decidirem por nós, mas tudo tem um limite e, no fim das contas, a resistência de um povo à adversidade imposta pelo poder tem um tempo.
Se forem três ou quatro que percam este ano a ida à Quarteira, enfim, a coisa faz-se. Se forem umas centenas sem casas, actualiza-se uma tabela de pobres do INE, e vamos para fim-de-semana. Mas se forem uns milhões a caminhar para a pobreza, a entregarem casas e a ficarem ainda mais desesperados, não pode o cenário ficar ligeiramente mais sombrio para quem nos governa?
É que quando justificamos a pobreza de milhões com leis da economia, eu lembro-me sempre da afirmação de Marcelo Rebelo de Sousa, no jornal da TVI, nos tempos de comentador a propósito da careca descoberta no BES e da primeira intervenção estatal. “Mas está a brincar?”, disse ele para o pivot, “já imaginou o perigo de risco sistémico se não ajudássemos o BES?”. Aí está, outra lei da Economia que em 2008 nos disse o que fazer. Parece-me óbvio, 14 anos depois, que foi bom segui-la.
Se a história dos nossos dias fosse o capítulo de um livro, com este enredo em que a população perde direitos, liberdades, condições de vida e boa parte do seu sustento no espaço de dois anos e meio, eu esperaria que o capítulo seguinte se iniciasse com uma revolução.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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