Estamos a jogar ping-pong, e ele, enquanto me tenta perturbar o nervo a cada batida – introduzimos mind games há muito na disputa de qualquer ponto, seja xadrez ou raquetadas, pois há que moer a cabeça do adversário –, vai dizendo: “ya pai, tens bué sorte, tipo nessas chouriçadas“.
“Bué, ya, tipo… desde quando falas assim?”, acrescento eu. E ele, sabendo que estamos a dias de ir para casa, diz-me, “estou já a treinar para falar com os primos”
Continuei concentrado na bola porque, de momento, já não lhe posso dar borlas, sob pena de perder o título de campeão da casa, mas fiquei com a frase ali a bater-me na parte de trás do crânio.
Recuei duas décadas e lembrei-me de um miúdo que orientei durante um estágio na Autoeuropa. Tinha nascido em Tomsk, na Sibéria, e crescido na Alemanha, para onde os pais tinham emigrado, algures à sombra da fábrica mãe da VW.
Andámos uns meses por Setúbal onde, entre outras coisas, lhe tentei explicar que a praia se chamava Albarquel e não Albarcuel.
Ele dizia-me, várias vezes, que em lado nenhum se sentia um local.
Na Sibéria era alemão e, em Wolfsburg, passava por russo.
Desde que me mudei para a Suécia conheci mais N histórias destas, muitas com o denominador comum da Bósnia. Crianças que de lá saíram na década de 90 a fugir da guerra e que hoje, quando voltam, já lá não pertencem. Mas aqui, numa sociedade absolutamente catalogada, nunca chegaram também a suecos. Portanto, ficam ali no limbo eterno.
O meu filho está precisamente nesse limbo, e eu, por alguma razão, sinto uma enorme dúvida em todo o processo e escolhas de vida. Como perceber o que é mais certo ou até importante, antes de acontecer?
Até eu, que saí de Portugal com 28 anos, perfeitamente criado e enraizado, já sinto algumas dificuldades quando estou aí, e vejo (e ouço) coisas que para mim, hoje em dia, não fazem qualquer sentido e são perfeitas aberrações.
Não digo que sejam erradas. Digo apenas que chocam, e muito, com aquilo que vejo em meu redor há 16 anos. Não sinto dificuldades com a língua, mas sinto dificuldade com a mentalidade. Já não me encaixo numa série de coisas que, antigamente, eram parte integrante do meu quotidiano.
O Diogo refere-se aos suecos como “suecos”. Aos portugueses como “nós”. Portanto, ele identifica-se e sente-se como estrangeiro. Quando aqui está, fala um sueco perfeito, mas não tem cabelo louro. A pergunta primeira, a ele ou qualquer não louro é, “de onde vens?”
Quando está em Portugal parece-se com qualquer um de nós; porém, fala com erros, com sotaque, com traduções de estruturas gramaticais suecas que não existem em português. Toda e qualquer criança, mal o conhece, pergunta ao fim de dois minutos: “de onde vens?”
Portanto, esteja onde estiver, Lisboa ou Gotemburgo, de imediato assumem que ele não é dali.
Abordo o assunto com desvelo, mas sei que ele não se sente confortável com isso. Ainda assim não desanima. Basta chegar a uma praia qualquer e ver uns putos aos chutos numa bola e mete conversa. Aliás, vale-lhe (e a mim também) o espírito aberto de não se encolher perante a adversidade; caso contrário, seria um problema ir a casa.
É já agora um problema recorrente entre emigrantes de segunda geração. O desconforto no contacto em cada regresso a casa e um progressivo afastamento. Desde que ele nasceu que falamos português única e exclusivamente para garantir que esse corte nunca chegará. Mas vão-se tropeçando numas pedras pelo caminho – e, ao contrário da frase fofa, não servem para fazer castelos.
Em tempos, num jogo de futebol entre miúdos, onde eu também participava, um dos putos foi bastante desagradável e começou a gozar com uma palavra mal pronunciada pelo Diogo. Ele não ligou, eu fingi que não ouvi – e na jogada seguinte dei uma sarrafada no miúdo.
Eu sei, a falha é minha, mas não consegui.
Eu vejo o esforço que o Diogo faz para ser entendido, hoje em dia em três línguas, e tenho tentado, da minha parte, corrigir todas as falhas gramaticais. Não há dia que não corrija palavras ou frases. É uma luta diária, mas não consigo substituir 12 anos de escola. E a culpa de ele não andar numa escola portuguesa não é dele, é minha. Fui eu que escolhi emigrar, e fui eu que o “condenei” a crescer na Suécia, na escola pública onde ele é a minoria.
A culpa de ele se sentir diferente, na Suécia ou em Portugal, também é minha. É um peso que carregarei sempre com a desculpa de achar que, aqui, ele terá mais oportunidades de vida e acesso a um ensino universal de educação melhor. Digo a mim mesmo, talvez para acalmar a consciência, que a vida dele será mais fácil por crescer na Escandinávia.
Apesar de tudo, ainda acho que não me enganei. Ainda acho que crescer num país desenhado para se ser criança é um privilégio. Ter ciclovias, um campo de futebol em cada bairro, amigos ao lado de casa, horários de trabalho que permitem horas de parentalidade diárias, salários que permitem ver qualquer canto sonhado do mundo e ensino universal, para além da liberdade que a segurança e a organização de cada bairro permitem, não deixam de ser luxos nos dias que correm.
Restam alguns verões, páscoas e natais, até que ele decida se fica por aqui com a Johanna ou, em alternativa, volta às origens levando consigo a Mari Cruz. Imagino sempre uma chilena a entrar na família, não sei bem porquê.
Ainda acho que um dia iremos juntos para Portugal. E por aí ficaremos, não sei bem a fazer o quê. Mas nunca deixaremos de ser emigrantes, isso é garantido. Seja no pensamento ou na conjugação do verbo IR.
Pode ser que isso seja, quiçá, bué de fixe. Vi får se…
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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