Sempre que um grupo de trabalhadores do sector público luta por direitos laborais, levanta-se a turba dos indignados. Reparem no pormenor de eu dizer “sector público”. Não há luta no sector privado, há resignação.
Mas dizia eu: levantam-se vozes, normalmente com os mais estapafúrdios dos argumentos, contra as classes profissionais que se organizam para lutarem pelos seus direitos. Os alvos desta semana são os médicos.
Devo dizer-vos uma coisa para início de conversa. Se pensarmos que andamos há 35 anos a receber subsídios europeus e que continuamos pobres, e com auto-estradas de luxo, é mais do que natural que constantemente assistamos a lutas laborais. Assim de repente só me lembro de três ou quatro classes profissionais que têm salários comparáveis aos parceiros europeus mais desenvolvidos.
Portanto, estranho seria se não víssemos greves e lutas, quando o nível salarial é, na generalidade, o maior problema português.
Isso aplica-se a um professor, a um enfermeiro, a um médico ou a qualquer funcionário público que não seja autarca, deputado, vereador ou secretário de Estado. Ou ministro.
De entre as acusações com que os médicos foram brindados – com o “gananciosos” à cabeça –, houve uma que me saltou à vista: a de terem a obrigação de devolver o dinheiro que o país investiu neles, nas suas longas e caríssimas formações, trabalhando em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS). E acrescento: as horas necessárias por semana e pelo salário que a tutela quiser.
Ou seja, para alguns de nós, um médico deve trabalhar 10 horas por dia, fazer urgências e ganhar menos do que um qualquer assessor de secretário de Estado – daqueles que entram e saltam de um Executivo sem darmos por eles, sem terem qualquer formação para lá do networking dos papás.
Eu não sei se já perderam algum tempo a perceber como funciona o ensino público, mas, na base, todo e qualquer curso universitário numa instituição não-privada é quase integralmente financiado pelo Estado. Seguindo essa lógica da dívida de gratidão, um professor tem que dar aulas 10 anos em bairros sociais, um engenheiro civil tem que fazer as primeiras duas pontes de borla e um advogado tem que defender criminosos pro bono durante cinco anos. Pelo caminho, tornam-se vegetarianos e comem a relva do Monsanto.
É exactamente pelo custo da formação de um médico, pela duração dos cursos e das especialidades, que o Governo deveria proteger o investimento, dando a estes profissionais salários dignos. Já não digo comparáveis aos seus colegas europeus do Norte, mas, pelo menos, suficientes para o grau de importância que esta profissão tem em qualquer sociedade.
O risco é que, obviamente, depois de 10 anos de formação, os médicos escolham uma compensação financeira fora do SNS ou, ainda pior, fora de Portugal.
Não sei se conhecem muitos países com excesso de médicos. Eu não me lembro de nenhum, é uma daquelas profissões sempre em falta, talvez tirando o exemplo cubano que, a dada altura da História, trocavam médicos por petróleo – tema para outro dia.
Portanto, a questão é simples: sabendo os médicos que podem vender a sua força de trabalho por valores muito mais altos, porque devem eles jurar fidelidade ao SNS e aos salários baixos?
Esperam que alguém que dedica 20 anos da sua vida a estudar, depois aceite salvar vidas por um salário inferior ao de qualquer boy do PS ou PSD, com experiências profissionais na área da distribuição de sacos de pano e canetas com logótipos de dois em dois anos nas arruadas? Tenham dó!
Eu espero que os médicos, ou qualquer classe profissional, lute pela dignidade das carreiras e pela justa valorização do trabalho. E isso, meus amigos, num mundo capitalista, começa no salário.
Ninguém trabalha por caridade e no nosso caso em concreto, se conseguimos andar a salvar Salgados e Rendeiros, e a sustentar uma corja de políticos com zero impacto na sociedade, podemos certamente pagar salários de Primeiro Mundo a quem nos mantém nele mais tempo.
Um dos nossos problemas enquanto sociedade revela-se a cada greve, a cada discussão com o patronato. Há sempre alguém que diz “eu vivo com 600 euros e tu não consegues com 2.000?”. É esta a raiz dos males: o pensamento que coloca sempre a fasquia no chão. Se eu estou na miséria, não quero sair dela, quero é que tu venhas para onde estou.
600 euros não é um salário na Europa: é uma esmola, uma afronta, uma exploração. E 2000 euros, depois de cortados os impostos, também não foge muito disso. É aquilo a que nos países civilizados se chama “subsídio de estudante”.
Nós – ou vá, a maioria de nós – que trabalhamos por conta de outrem, tudo o que temos para trocar é a nossa força de trabalho. Para quem não nasceu em berço de ouro, e depende, em exclusivo, do seu trabalho para viver, é a forma como fazemos essa troca que nos atribui uma vida de qualidade ou de sofrimento.
E é por isso que não podemos apedrejar quem luta pelos seus direitos laborais e procura a justa compensação pela venda da sua força de trabalho. Devemos é juntar-nos a eles.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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