Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Acta Pædiatrica: nurturing the child, uma revista científica mensal com peer-review (revisão pelos pares), editada pela Wiley Online Library, sob o título The benefits of COVID-19 vaccination programmes for children may not outweigh the risks. O PÁGINA UM obteve autorização expressa do autor e da revista para a sua publicação integral. A tradução foi realizada por Pedro Almeida Vieira com revisão do autor.
As vacinas salvaram milhões de vidas, e entre estas incluem-se as vacinas contra o coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2), que foram desenvolvidas em tempo recorde. Em Maio de 2021, a Food and Drug Administration [a entidade reguladora norte-americana dos medicamentos] e a Agência Europeia dos Medicamentos (EMA) autorizou o uso da vacina Comirnaty (Pfizer-BioNTech) para crianças entre os 12 e os 15 anos. Em 25 de Novembro de 2021, a EMA estendeu essa autorização para as crianças com idades entre os 5 e os 11 anos.
A decisão de vacinar as crianças coloca muitos desafios, uma vez que a COVID-19 é uma doença muito mais ligeira nessa faixa etária, tornando o rácio de risco-benefício menos evidente.
Relatos de eventos adversos graves logo após a introdução da vacina em larga escala foram documentados. A suspeita de que as vacinas de ácido ribonucleico mensageiro (RNA mensageiro) podem provocar miocardite e pericardite, especialmente em adolescentes e adultos jovens, foi logo confirmada por estudos clínicos correctamente desenhados.1,2
Há quatro pontos-chave que necessitam de uma abordagem sobre a vacinação de crianças.
O primeiro são os benefícios potenciais para as crianças. As vacinas foram desenvolvidas para prevenir a infecção por SARS-CoV-2, a COVID-19 grave e a mortalidade. Devemos avaliar a gravidade da doença em crianças para compreender os reais benefícios da vacinação. O risco de ser hospitalizado devido a COVID-19 grave é extremamente baixo em crianças. Um estudo inglês de âmbito nacional, que incluiu todas as crianças hospitalizadas com COVID-19 durante o primeiro ano da pandemia, mostrou que 229/251 (91%) dos internados em unidades de cuidados intensivos pediátricos (UCIPs) tinham condições subjacentes ou comorbilidades.3
Esta situação ocorreu antes da disponibilidade de vacinas e quando a variante Alfa era dominante. Houve também 312 internamentos em UCIPs devidos a síndrome inflamatória multissistémica em crianças (MIS-C). Globalmente, hospitalizações em UCIPs relacionadas com COVID-19 ou MIS-C abrangeram 0,005% da população com idade pediátrica na Inglaterra, constituída por 12,02 milhões de pessoas.3
Desde o início da pandemia, até Março de 2022, as crianças e adolescentes com menos de 20 anos que testaram positivo para SARS-CoV-2 representaram 0,1% do total de mortes relacionadas com a pandemia em países de rendimento elevado.
Segundo a UNICEF, cerca de 75% das mortes de crianças e adolescentes até aos 19 anos ocorreu naqueles que tinham comorbilidades. O risco de miocardite, desenvolvida entre 1 e 28 dias após a infecção pelo SARS-CoV-2, foi avaliado por um estudo envolvendo mais de 3 milhões de participantes com idade mínima de 16 anos, tendo-se apurado um risco de 10 casos por milhão (com intervalo de confiança de 95% de 7-11) na população exposta abaixo dos 40 anos de idade.2
Do nosso conhecimento, não existem dados que comprovem que as actuais vacinas previnem a miocardite associada à infecção por SARS-CoV-2. Os únicos dois casos de miocardite associados ao SARS-CoV-2 que observámos foram em adolescentes totalmente vacinados.
Até agora, os dados sugerem que o principal risco associado à infecção por SARS-CoV-2 em crianças saudáveis é a MIS-C. As vacinas podem evitar esta complicação?
Dois estudos demonstraram que a incidência de MIS-C foi cerca de 90% menor em crianças vacinadas do que em não-vacinadas.4,5 No entanto, é importante considerar o momento e o desenho dos estudos. Como esses estudos foram realizados imediatamente após a vacinação, esperava-se que o número de infecções por SARS-CoV-2 fosse muito menor no grupo vacinado.
Embora esses resultados sejam promissores, a suposição de que a vacina previne a MIS-C deve ser avaliada comparando as taxas de MIS-C em crianças vacinadas e não-vacinadas que foram infectadas com SARS-CoV-2. Esses estudos também revelaram que sete crianças totalmente vacinadas desenvolveram MIS-C. 4,5 Estudos anteriores já tinham apontado que a MIS-C pode desenvolver-se em crianças vacinadas.
Outro argumento potencial para vacinar crianças é a melhoria no impacte social e psicológico da pandemia. Como médicos, devemos lembrar que uma vacina é uma intervenção médica para prevenir uma doença e nunca deve ser usada para evitar restrições impostas pelas autoridades de saúde ou governamentais.
O segundo ponto são os benefícios potenciais para terceiros. As vacinas têm sido usadas para erradicar doenças através da imunidade de grupo e também foram usadas para proteger membros da família ou indivíduos vulneráveis numa determinada comunidade.
A imunidade de grupo ocorre quando uma grande parte da população desenvolve imunidade a uma doença, tornando improvável a sua disseminação de pessoa para pessoa, protegendo-se assim toda a comunidade, e não apenas os vacinados. A imunidade de grupo varia de doença para doença, dependendo do nível de infecciosidade. Deve-se salientar que a imunidade de grupo só é possível se os indivíduos imunes não forem infectados ou não transmitirem a doença.
Sabemos agora que este não é o caso do SARS-CoV-2, e que tanto os indivíduos anteriormente infectados como os vacinados podem infectar-se e transmitir a doença, impossibilitando assim a imunidade de grupo. Apesar disso, o risco de infecção é menor após a vacinação, e a vacinação de uma criança pode ser justificada em casos específicos se, por exemplo, um membro da sua família tiver uma condição clínica que impeça a sua vacinação.
Por outro lado, se todos os membros adultos de uma família estiverem totalmente vacinados, então há menos lógica em vacinar crianças para proteger os adultos vacinados.
O terceiro ponto são os riscos potenciais associados às vacinas de mRNA. A principal preocupação de segurança com vacinas de mRNA é o risco de miocardite, que foi bem estabelecido em adolescentes que receberam a vacina SARS-CoV-2. 1,6
Um estudo mostrou que este risco foi maior após a segunda dose, afectando 390 adolescentes do sexo masculino e 49 adolescentes do sexo feminino por milhão de segundas doses administradas.7
A incidência reportada de miocardite foi menor em crianças com idade entre os 5 e os 11 anos, afetando 4,3 rapazes e 2,0 raparigas por milhão de doses administradas. Isto era ainda significativamente superior ao risco background de miocardite naquela faixa etária [risco de base ou incidência não-devida à exposição].
Embora a maioria dos casos de miocardite pós-vacinal tenha sido leve, e os pacientes recuperaram, houve casos graves de choque cardiogénico e, pelo menos, cinco mortes relatadas, incluindo dois adolescentes e um jovem adulto de 22 anos.6,8 As complicações a médio e longo prazos da vacina permanecem desconhecidas, e pacientes com miocardite podem desenvolver cardiomiopatia dilatada, possivelmente anos mais tarde.
Esses dados indicam que os riscos não são os mesmos para todas as crianças, e o risco da vacina pode superar os benefícios, especialmente para um adolescente saudável do sexo masculino.
O quarto ponto diz respeito à variante Ómicron. Os estudos citados neste trabalho foram realizados antes do surgimento da variante Ómicron, que parece ter um curso de doença mais leve do que as anteriores variantes de preocupação.
O rácio risco-benefício para a variante Ómicron parece apoiar a suspensão da vacinação em crianças, tendo em conta a possibilidade de evasão vacinal demonstrada por múltiplos estudos de neutralização de anticorpos.9
Um artigo de Fevereiro de 2022 do Departamento de Saúde do Estado de Nova Iorque estudou a eficácia da vacina entre crianças antes e após o surgimento da Ómicron, tendo sido mostrada uma redução acentuada na eficácia da vacina contra essa nova variante de 66% para 51% nas crianças dos 12 aos 17 anos, e de 68% para 12% nas crianças dos 5 aos 11 anos. A eficácia da vacina contra a hospitalização também caiu de 85% para 73% e de 100% para 48% respectivamente.10
Portugal tem a quarta maior taxa de vacinação do Mundo, com mais de 90% da sua população totalmente vacinada. Apesar disso, registou 1,25 milhões de novas infecções por SARS-CoV-2 em Janeiro de 2022, sendo os indivíduos vacinados a maioria desses casos.
Estes quatro pontos-chave demonstram que a decisão de fornecer vacinação universal para evitar que crianças saudáveis sejam infectadas com SARS-CoV-2 não é simples.
A actual dominância mundial da variante Ómicron sugere que os benefícios podem não superar os riscos associados às vacinas de mRNA.
Seria mais sensato recomendar que apenas crianças específicas sejam vacinadas, incluindo crianças com factores de risco que as tornam mais susceptíveis à COVID-19 grave e aquelas que estão em contacto próximo com familiares vulneráveis que não podem ser vacinados.
Quando tomamos decisões sobre vacinas durante a pandemia em curso, devemos lembrar que as crianças não são adultos pequenos e que temos a obrigação de primeiro não causar danos.
Francisco Abecasis é pediatra na Unidade de Cuidados Intensivos no Hospital de Santa Maria (Lisboa) e professor auxiliar convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa
Bibliografia
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