Estranhei ver uma casa à venda na minha da rua. Nos últimos quatros anos, que me lembre, que ninguém vende nada por ali. Estranhei ainda mais que o preço de venda fosse abaixo do valor de “mercado”. Note-se que este é um dos meus termos favoritos. Mercado. Essa entidade abstracta que se auto-regula, e que nos convence daquela verdade absolutamente idiota: “se alguém pagou, é porque vale”.
Perdi a conta ao número de vezes que discuti isto com os mais variados entusiastas dos mercados. Um T2 em Arroios não vale 500.000 euros. Um T4 no Seixal não vale 800.000 euros. Uma casa de madeira na minha rua não vale 600.000 euros. Ponto final.
Podem dizer que se venderam, que alguém pagou, que um norueguês achava barato. O bem adquirido NÃO VALE ESSE VALOR. Ponto final. Quem o vendeu é que lucrou mais do que lucraria sem especulação pornográfica.
Repeti esta discussão vezes sem conta, terminando sempre da mesma forma: como ficarão as coisas no dia em que o último comprador, depois de anos de vendas especulativas, ficar com um bem nas mãos que vale menos do que o crédito que contraiu por ele? Por outras palavras: o que acontece quando quisermos vender uma casa que o mercado nos diz, agora, valer menos do que pagámos por ela? Ficamos assustados e vendemos ao melhor preço. E depois os outros apercebem-se que o mesmo lhes sucederá, e vendem ao melhor preço, que rapidamente tende a ser cada vez mais baixo… Ou seja, rebenta a bolha.
Há uma bebedeira colectiva em que todos fomos culpados. Nós, privados, que aceitámos que os mercados nos dissessem que um Fiat valia o preço de um Ferrari, e os bancos, que avalizaram créditos para Ferraris tendo Fiats como garantia.
Finalmente, sempre com a guerra na Ucrânia, as sanções e a escalada dos preços em pano de fundo, aparecem os aumentos das taxas de juro do Banco Central Europeu (BCE) que, obviamente, vão trazer à vida aquelas páginas do fim da resma que nos entregam quando fazemos um crédito hipotecário – e que, claro está, ninguém lê. “Se a Euribor passar para 2%, então a sua prestação será X”.
Em Gotemburgo, onde um apartamento no pior bairro custa perto de 200.000 euros, as famílias estão endividadas até ao osso. Meio milhão de euros por um apartamento é hoje algo perfeitamente banal na cidade. Uma realidade parecida com a de Lisboa, eu diria, onde qualquer apartamento fora da Amadora começa nesses valores.
Os bancos suecos começaram a avisar os clientes das constantes subidas das taxas – deduzo que em Portugal se esteja a fazer o mesmo – e para quem tinha créditos variáveis, os mínimos a um ano passaram para 4%. Isto significa, grosso modo, que as famílias dobrarão os seus custos com a habitação.
Portanto, não só os salários diminuíram com a inflação como, por conta do aumento das taxas de juro no crédito hipotecário, ficarão muitas famílias numa situação de aperto até aqui inimaginável. O mercado vai-se encher de casas, os preços vão baixar, alguns não vão conseguir pagar os créditos ou vão trabalhar até rebentar apenas para pagar contas.
Pergunto: era assim tão difícil perceber que dizer “o mercado diz que” é, na verdade, apenas uma forma imunda de justificar lucros disparatados num reduzido espaço de tempo? Não é mais ou menos óbvio que não, um T1 numa colina de Lisboa com uma janela de 10 cm de vista para o Tejo, não valerá nunca, por mais franceses que o queiram, 350.000 euros?
Se a situação na Suécia, onde o nível salarial e de poupanças são altos, caminha para um nível assustador, eu não quero imaginar o que vai acontecer em Portugal.
Mas quero muito que me voltem a explicar as vantagens do mercado desregulado, do envio de dinheiro e armas para uma guerra, das sanções que estão a rebentar com os russos e de como os aumentos do BCE nos ajudam a controlar a despesa.
Quero também entender, com muita vontade, por que razão a banca é pública na altura de ser salva, mas totalmente privada e autónoma na altura de decidir o tamanho dos seus lucros.
As pessoas vão perder casas e os créditos dos palheiros transformados em mansões vão acabar na dívida pública. No fim, o único culpado, será o gajo que tentou sair de casa dos pais quando percebeu que já tinha 35 anos.
Entrámos num comboio há anos que só anda em círculos e, por mais paragens que se repitam, ainda acreditamos que seguimos em linha recta.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.