CRÓNICAS DE UM OFÍCIO SANTO

Cão que morde também ladra

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Um lugar sagrado evoca muito mais do que o respeito pelo religioso; e, por isso, dependendo de cada cultura religiosa, somos levados a viajar pelos símbolos, pelos efeitos, pelas regras da geometria, da acústica, da óptica. O espaço sagrado torna-se, portanto, uma dimensão pela qual o ser humano viaja para se conhecer e se encontrar com o Divino.

Despertado pelos sentidos, pelas emoções e sensações provocadas por cada símbolo, por cada forma, pelo silêncio, pela luz, pelas sombras, pela presença e pela ausência, a Humanidade sacraliza o que está fora para depois despertar o que se encontra dentro.

two short-coated brown and black dogs playing

Num ritmo que nos leva a uma permanente linguagem simbólica pela qual os sinais sensíveis dos mistérios inteligíveis constituem, para a Humanidade, um caminho ousado, misterioso e desafiante, que nos segreda, passo a passo, em cada pista, em cada sentido, em cada forma.

Também por isso, muito antes da maioria de nós saber ler e escrever, as histórias são fixadas pela pintura, pelos vitrais, pelos azulejos, pela arte. Não fosse a fraqueza humana e tudo pareceria perfeito.

Assentemos agora os pés na terra e recordemos a imagem do cão – símbolo de fidelidade, proteção, vigilância. Representação animal que, do Egipto Antigo à Grécia, atravessando tantas outras culturas e civilizações, se mantém transversal no significado e na proximidade aos humanos.

Diz o povo que: “Cão que ladra não morde” – um provérbio popular que se refere aos que muito falam, pouco fazem, confundem, perturbam, se intrometem, mas não são consequentes. Ora, durante os últimos seis meses, viu-se isso contra o jornal PÁGINA UM – nenhum ousou e conseguiu morder. Verificou-se o ditado.

Estratégia diferente adoptou o jornal de onde vos falo: ladrou e tem mordido, nem sempre por esta ordem. Tem deixado marcas. Muitas e diversas.

Mas, ainda a propósito dos cães e do jornalismo, gostava de recordar as velhas lutas mortíferas – que são, muitas vezes perversamente manipuladas pelos humanos ao cortarem as caudas dos cães para evitar a desistência – já que é metendo a cauda entre as patas que o animal manifesta o medo e a derrota.

Acto desumano, esse, o de amputar um membro que pode manifestar alegria ou medo. Perdoem-me a correcção – gesto, quiçá, demasiado humano.

Mas gostava de acrescentar algo mais à crónica de hoje. Durante muito tempo associou-se à língua daquele ser vivo a ideia de cura.

Julgou-se que as feridas saravam mais facilmente quando eram lambidas por um cão do que sendo simplesmente lavadas com água que tudo lava – benditas as línguas destes pequenotes que, deixando-se comprar por biscoitos e afagos, continuam fiéis companheiros.

Ora, assim se conclui facilmente que o comportamento canino é um franco resultado de uma relação e de uma tensão entre o estado selvagem e instintivo e a estreita ligação aos humanos. Somos todos muito parecidos, pena que a língua humana não seja tão eficaz a sarar como eficaz é a ferir.


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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