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O escritor Emílio Couto, sempre dito Mia – e como tal reconhecido –, nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955. Filho de pais portugueses, próximo, desde muito jovem, das lides e práticas das letras, até pelo convívio com o seu pai, Fernando Couto, poeta e colaborador de uma das mais importantes revistas culturais moçambicanas, Paralelo 20, Mia Couto começou a publicar poesia ainda adolescente.

Passando adiante de um sublinhar de precocidades que poderiam, até, nada significar, registemos como marco importante para o desenvolvimento da sua actividade de escritor, o primeiro livro que deu à estampa em 1983: Raiz de orvalho.

SÃO PAULO, SP, BRASIL, 24/08/2013 – Coluna Monica Bergamo: palestra do escritor moçambicano Mia Couto para o Fronteiras do Pensamento, no teatro Geo. Na foto, Mia Couto. Foto: Greg Salibian/Folhapress – ILUSTRADA

Conjunto de poemas onde se encontram pontas do filão inventivo, temático e verbal, que virá a desenvolver, tais textos apresentam-se segundo um processo formal discursivo que abandona logo de seguida.

O verso e a composição ostensivamente lírica são preteridos em favor da formulação que se torna típica do seu labor: a narrativa curta a que, de um modo geral, podemos chamar conto. No entanto, tal prática não configura, dita assim, simplesmente, a realidade global que é a sua obra.

Com efeito, se é o conto que se revela como a sua forma privilegiada de expressão, pelo modo como domina a sua representação narrativa o escrito breve, tendo evidente um acontecimento bem desenhado, envolvendo o destino ou um lance importante da vida de pelo menos uma personagem, é verdade que, noutros modos de expressão, ensaiou, e muito bem, os seus passos.

Capa da 2ª edição de Vozes anoitecidas, primeira obra de Mia Couto publicada em Portugal, em 1986.

Resumindo o conjunto da sua obra num panorama breve, podemos dizer que, depois da sua estreia em poesia, se afirmou com a publicação de dois livros de contos, Vozes anoitecidas (1986) e Cada homem é urna raça (1990), “o primeiro destes granjeando-lhe notoriedade não só em Moçambique como também em Portugal e noutros países, nomeadamente devido às traduções para inglês e italiano” (Laranjeira, 1995: 144).

Contudo, ao dar à estampa um livro de crónicas, Cronicando (1988), resultado da publicação periódica na comunicação social, apresenta-nos um conjunto híbrido de pequenas narrativas “exemplares”, quase histórias para serem lidas como apólogos, e digressões reflexivas em que o rápido registo da situação serve de exemplum.  

Se algumas peças desse conjunto, que foi publicado em Portugal em 1991, podem ser lidos como contos, pelo modo como domina uma situação fortemente marcada pela intriga, outros têm de ser encarados de modo diferente.

Forçoso será perspectivar, a partir desses textos menos evidentemente enquadráveis num género, a forte componente discursiva que a voz da enunciação apresenta nos textos de Mia Couto. Verifica-se neles, de um modo curioso, a voz que constrói a história ou gera a situação discursiva entrar no universo representado, por vezes quadrando-se numa personagem, para, em seguida, num golpe de geometria textual, sair a comentar a História em que a estória emerge.

A partir do seu primeiro romance, Terra sonâmbula (1992), um projecto que, desde há anos, o seduzia, pode afirmar-se que, em Portugal, se desenvolve “um verdadeiro culto por Mia Couto, expresso no fascínio que a sua figura exerce, a que não é alheia a ausência de pose intelectual, a simplicidade nos encontros com o público, durante os quais prefere contar histórias pícaras ou dramáticas do quotidiano de Moçambique, a falar da sua obra” (Laranjeira, 1995: 144).

Cremos que, nessa figura assim constituída, do escritor que vai crescendo na sua escrita, se desenham os contornos principais daquilo que torna este autor uma entidade fascinante pela forma como deriva na senda da permanente fractura, da constante e irónica distância dicotómica: percurso que se desenvolve na unidade da obra e na duplicidade cultural, vivendo a ambiguidade que instaura a vários níveis numa espécie de paródia da especularidade, ou alegria do discurso de sentidos equívocos.   

De facto, as narrativas de Mia Couto “colocam em situação de exposição, confronto e análise as várias culturas e crenças do homem moçambicano” como já sugeriram alguns críticos (cf. Laranjeira, 1995).

O humor incómodo é, sem dúvida, um dos elementos a ter em consideração mas, se admitimos que essa exposição afecta o universo histórico referencial da suas histórias (romances e contos), temos de admitir que também o universo do sujeito da narração, o narrador mais ou menos autoral, ou cronista que chega a identificar-se como Mia Couto é exposto aos níveis mais profundos da sua crença: aqueles em que a palavra se motiva, a sintaxe se compõe e os alicerces da representação se fundam.

Primeiro romance de Mia Couto, Terra sonâmbula, foi publicado originalmente em 1992.

A sequência das suas restantes publicações vem demonstrar-nos que a vereda escolhida, para desenvolver obra em meio de culturas, em abismo de línguas, é o mecanismo fundamental da poética de Mia Couto.

Em 1994, publica Estórias Abensonhadas, em 1996 dá à estampa o romance A Varanda de frangipani e, no ano seguinte, Contos do nascer da Terra. Cada vez mais, ao longo da sua produção, domina aquilo que poderíamos chamar a dupla ruptura: com as normas da tradição ilustre da literatura portuguesa, sua cultura de origem,  por apelo ao regime do fabuloso – como faz abertamente, por exemplo, no seu último romance, em que o narrador, Kindzu, é um morto cujo diário foi encontrado – mas sem optar, exclusivamente, pelo fabulário africano; e com as normas da língua portuguesa sem se decidir, como se patenteia, por nenhuma língua moçambicana.

No entanto, tal posição de ruptura é sustida como ruptura, não como abandono. O que se exibe é o rasgão, ou a fractura. Mia Couto não abandona o terreno da literatura que se desenvolveu como uma das grandes forças de coesão cultural a partir da Europa. Se repararmos bem, por exemplo, o morto narrador apela imediatamente para uma das figuras tutelares da literatura em língua portuguesa (brasileira, talvez não por acaso), que é Machado de Assis, com o seu Memórias póstumas de Brás Cubas.

Se formos atentos às rupturas que desenvolve serena e persistentemente, cada vez com mais frequência, em relação à norma da língua portuguesa (tomando como padrão uma escolaridade avançada e um acordo ortográfico a obter), verificamos que ele rompe pelo excesso de domínio da língua, buscando as rupturas nos limites do possível.

Quanto a este último aspecto, podemos dizer que Mia Couto fractura a unidade do “padrão” pelas marcas da influência dos esquemas de colocação de afixos (sejam eles prefixos sufixos ou mesmo infixos) à maneira banta. De facto, o que ele representa, na própria aventura da escrita, é o acto vertiginoso de conduzir uma língua (que até é a sua de origem – e não dizemos materna porque ele, no seu radicalismo semântico, nos lembraria que não foi gerado por nenhuma língua) até à curva onde range, por ímpeto causado pelas estruturas e esquemas mais gerais, de línguas com as quais está em contacto de bilinguismo.

A sua opção é a de uma sub-reptícia ousadia em língua dupla, sob a capa da plenitude de uma só língua, com a intromissão, pontual e amplamente anotada, de uma ou outra palavra de origem moçambicana. Também aqui sabemos que Mia soube guardar e salvar honrosos parentes, idos mas presentes: pensemos sobretudo em Guimarães Rosa que tanto prezava a língua alemã, inspiradora dos palavrões compridíssimos com sabor a sertanejo, a índio, a cafuzo e mesmo a piar de ave ou bicho de pantanal, pelos quais ele brindava a nossa imaginação.

De facto, quando Mia Couto nos apresenta o seu léxico português, ele não faz mais do que tentar ousadias de mistura, que resultam em novidade e produtividade de expressão. Por exemplo, nada impede “antemanualmente” de ser português, excepto o não se usar. Talvez não se tenha usado.

Trilogia de As areias do imperador, obra do género histórico, rara na bibliografia de Mia Couto.

No entanto, este mecanismo tão elementar da nossa língua que permite fazer advérbios de tudo (e isso, Pessoa, por exemplo, tinha-o descoberto claramente) permite a entrada de estruturas morfo-sintácticas das línguas bantas mais comuns em Moçambique na língua portuguesa.

O filão africano desta laboração já é muito rico. Mia Couto revela conhecer-lhe muito bem as realizações – o que não é de espantar, pois um dos cultores desse modelo (embora de modo menos sistemático, em nosso entender) foi Luandino Vieira, escritor angolano com o qual o autor moçambicano mais jovem tem francos parentescos.

Reparando bem, o que aqui acabamos por fazer é o elenco canónico de alguns pontos destacáveis de entre os grandes escritores que pelo mundo fizeram crescer o português como língua, que a consolidaram, que a mantiveram viva. Isso fica claro e ninguém melhor do que Mia Couto o sabe fazer, como tentaremos mostrar em breve encerrando a nossa apresentação deste novo grande escritor.

É bom acrescentar, apesar de tudo, antes de passarmos à apologia de uma nova odisseia da escrita pelo próprio autor, que a aventura de Mia Couto tem, também, uma dimensão continental. Faz parte de uma importante tradição africana, recente mas profunda, buscar caminhos para a emergência ampla da sua expressão escrita. O caminho para essa abertura tem-se revelado, no entanto, bastante escabroso e, no mínimo, tem apresentado complexas dificuldades.

Mia Couto, durante o discurso de entrega do Prémio Camões em 2013.

Muitas das línguas africanas não são facilmente grafáveis; muitos países africanos dificilmente poderiam optar por uma língua dominante (para já não falar da complexidade dos dialectos que algumas têm); e a escolarização, a partir de todas essas dificuldades, manifesta-se como mais um escolho a obstruir o caminho. A solução prática tem sido o recurso às línguas dos colonizadores que, para fins práticos e de instrução básica, se mostra satisfatória.

Perante esta última solução para a escolaridade, muitos escritores optaram por exprimir, numa espécie de tradução possível, o manancial cultural de que eram portadores e recriadores, em francês, inglês, português e mesmo, num ou outro caso, em alemão.

O resultado não é nada desprezível. Só em língua portuguesa podemos citar obra acabada e plena de um grande poeta, Craveirinha, de quem os “puristas” não costumam ter nada a dizer de mal, ou de um grande romancista que nos parece difícil questionar nesse terreno, Pepetela.

Mas, mais importante ainda, parece-nos o facto de o Nobel africano, Wole Soyinka, escrever algumas das suas magníficas peças num inglês que os entendidos reconhecem ser de um nível verdadeiramente shakespeareano. Contudo, uma outra linha africana, vinda de um controverso, mas magnífico narrador, também ele nigeriano como Soyinka, chamado Amos Tutuola, tem proposto uma aventura de deriva e transformação da língua do colonizador por força da intervenção da língua africana em que autor se exprime.

E, isso, segundo ele, seria muito mais trabalho de uma inspiração poética, do que de um deliberado esforço de tradução. É nesta última linhagem que Mia Couto, na sequência de outros grandes autores africanos, se vem inscrever.

Tão bem ou melhor do que qualquer dos seus mestres e émulos, o autor de que aqui falamos, multiplamente premiado, sabe defender essa posição. Fá-lo, no entanto, mais no terreno de quem conhece e defende a língua portuguesa contra imobilismos, do que de quem pretende a invasão da língua veículo.

O livro de contos O caçador de elefantes invisíveis, publicada no ano passado, é a mais recente obra de Mia Couto.

Não podemos entender de outro modo a dimensão irónica da sua frase: “Porque isto de falar ou escrever tem de ser dentro de margens. Como um rio manso e leve, tão educado que não levante poeiras do fundo. Um rio que passe com essa eterna transparência que, verdade autografada, só a morte possui. Seja então a pureza pela morte trazida e por ela conservada”.

É assim, deste modo, como percurso ou mudança que a língua se lhe afigura e só no processo desse percurso a língua pode ser criadora, no sentido forte que a literatura lhe anexa. É ao agitar a língua que a vida da mesma se assegura. Tal ideia volta num outro texto, pela figura da estrada.

Com esta, desenham-se, também, com clareza, já não tanto os limites de uma gramática normativa, como as fórmulas poéticas da criação: “Acontece que o mundo é sempre grávido de imenso. E os homens, moradores de infinitos, não têm olhos a medir. Seus sonhos vão à frente de seus passos. Os homens nasceram para desobedecer aos mapas e desinventar bússolas. Sua vocação é a de desordenar paisagens. (…) É que o pé, posto em viagem, anula a condição terrestre. Em troca, o chão se vai desnudando: na alma humana surgem as pegadas do planeta. Afinal, os carreiros, esses teimosos surgentes, não servem apenas para levar os viajantes. Eles próprios se movem junto com a travessia. Deste modo, os lugares se visitam entre si, recordando-se do tempo em que o universo estava todo no ventre de uma pequena gotinha”.

Talvez muitos vejam, nestas últimas imagens, a visão de um biólogo que, academicamente, Mia Couto é. E nós concordamos, mas pensando que um biólogo se confundirá com o biófilo (repare-se que, biófilo, além de significar “o que ama a vida”, em biologia designa é o ser parasitário, que vive nos organismos vivos) que todo o grande poeta é, mesmo ao saudar a morte.

Contudo, a imagem que gostaríamos de enfatizar é a dos que vêem no trabalho literário de Mia Couto uma ousadia maior: a de afirmar e defender, em situação de fractura e distância, a vitalidade de uma língua, capaz da grande transformação de travessia, dos desvios regeneradores e criativos: a desviagem.

É essa postura que ele mantém, até aos últimos livros que publicou e que se revelam incontestáveis êxitos literários e verdadeiros best sellers. É desse modo que uma língua pode unir povos, ser uma riqueza cultural, ser una porque nos entendemos com ela, e múltipla porque ajuda a construir as diferenças que nos libertam.


Bibliografia:

Laranjeira, Pires, 1995, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Universidade Aberta, Lisboa

Professor Emérito da Universidade de Évora

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