VISTO DE FORA

Chega: só há uma “festa” como esta!

person holding camera lens

por Tiago Franco // Junho 27, 2022


Categoria: Opinião

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O meu timing de entrada nos temas que circundam o Chega é quase sempre péssimo. Tenho a sensação que corro para a paragem e só vejo o escape do autocarro. Mas não é fácil, não é fácil, embora eu tenha tentado perceber este fenómeno da extrema-direita desde o início da aventura do nosso André.

Um dia estava ele na CMTV a discutir centímetros dum penalti com aquele advogado que, alegadamente, recebia umas massas do Rui Pinto; e, no dia seguinte, aparecia ele em frente à Assembleia da República aos gritos contra o sistema.

[Disseram-me que com a muleta do “alegadamente”, antes do verbo, podemos disparar toda e qualquer bojarda sem aquele risco incómodo de ir parar a um tribunal português. Ninguém tem 10 anos de vida para desperdiçar num processo na justiça lusa. De modo que, alegadamente, disparemos…]

André Ventura, líder do Chega.

Quando fui ver que ruído era aquele, e porque razão o gajo dos penaltis andava na rua a vociferar contra os poderes instalados, cheguei atrasado umas semanas. Já havia um partido político formado e com um segundo nome. O “Basta!” durou pouco e eu já só vivenciei mais a sério a experiência “Chegana”. Ainda dei ali o benefício da dúvida, porque, convenhamos, quem é que não corrige os temperos a meio do guisado? “Basta” era mais queque; “Chega” parecia mais do povo. Estavam afinados e prontos para partir.

Nome bem acutilante, e grito de guerra “vergonha” a postos, faltavam as ideias. Ouço por um amigo: “ouve lá, este Ventura é que diz as verdades!”. Fui ver as verdades a meio de uma campanha legislativa e, novamente, cheguei tarde.

Havia um programa político que previa o fim do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e da escola pública, mas, segundo consta, deu reclamações em barda. Foi alterado, e quando lá apareci já só vi a versão 2.0, mais difusa e macia, de forma a agradar às hostes. Pensei: “ora aqui está uma originalidade política, programas à la carte!”. Gostei e percebi de imediato que iam longe.

A legislatura foi mais fraca em termos de trabalho feito. Metade do tempo fora das votações e todo o poder de fogo colocado em vídeos do YouTube de dois minutos com bocas ao primeiro-ministro. O homem das verdades conseguia ainda assim trilhar o seu caminho. Continuei à espera das ideias, nem que viessem numa terceira versão do programa, mas, essencialmente, a coisa resumiu-se a cascar nos beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI) e nos ciganos, em geral, sem qualquer ordem em particular.

Lá por fora, o Chega colou-se aos outros partidos de extrema-direita – da Le Pen ao Salvini –, o que levou alguns ingratos a apelidarem-nos de racistas. Quando fui escrever sobre o tema, já o assunto estava, novamente, fora de prazo. Ventura, Parrachita e alguns incógnitos apoiantes desfilavam pela Avenida da Liberdade, em Lisboa, empunhando tarjas com o slogan: “Portugal não é racista”. Fiquei informado sobre a nova posição e até me senti aliviado. Era o Portugal que eu queria também.

André Ventura durante encontro do grupo político do Parlamento Europeu (direita e extrema-direita) Identidade e Democracia em 23 de Junho em Antuérpia (Bélgica).

Tentei então dizer qualquer coisa sobre o tema, mas, de repente, um deputado do Chega afirmou, na Assembleia da República, que só não tinha sido eleito vice-presidente por causa da sua cor de pele, ou seja, por discriminação racial. Fiquei fora de jogo – e sem hipótese de ir ao VAR, tema que o André tanto gostava de debater, antes de se meter nestas andanças.

Enfim, eu quero comentar a actualidade do Chega, mas torna-se incompatível com um horário de trabalho normal. Entre o tempo que começo a escrever e a pausa para o café, já o Ventura mudou de opinião três vezes. Aliás, nem estou a ser original, ele de facto mudou a intenção de voto três vezes no mesmo dia numa votação parlamentar. Não sei se o editor do PÁGINA UM aceita podcasts, mas, com palavra escrita, não há pai para a velocidade do Ventura.

Há uns meses ouvi uma intervenção de alguém do Chega que falava nos boys dos aparelhos partidários. Alegadamente do Carlos César que, alegadamente, tem metade da árvore genealógica encaixada em cargos públicos.

Muito bem, de repente senti um ponto de encontro e finalmente ia dar uma palmadinha nas costas por escrito. Porém, a meio do meu texto já se tinha descoberto que o pai de um deputado qualquer do Chega era agora assessor do Chega na Assembleia da República.

Não quero imaginar o drama de combinar um jantar com um gajo destes. Sugerem a tasca do Avillez, 20 minutos antes do repasto dizem que é mesmo na tasca, mas do Zé e em Alfama. Trinta minutos depois da hora ligam a perguntar se sabemos onde fica a roulotte da Sónia, ali por baixo da Segunda Circular, mesmo na saída do Campo Grande. É gente que não se decide. Ou que estuda pouco e navega às sortes. Também pode ser isso.

Antes do Verão, quando recebemos todos ordem de soltura da covid-19, o Ventura anunciou que o Chega faria a maior festa de Portugal, um festival algures em Julho, com comes e bebes, boa música e muita diversão. Pensei que seria uma forma de, por exemplo, arrasarem com o Avante.

Imagino que seja fácil: se um partido moribundo, que nos juram estar a dar os últimos passos (há décadas), consegue juntar uns milhares há quatro décadas durante três dias, certamente que o Chega consegue juntar muito mais.

A expectativa era alta até ter saído o cartaz do festival. E uso aqui a palavra “cartaz”, porque “programa” seria um exagero. Em termos de artistas, não sei se podem ser encaixados nessa categoria profissional: confirmados, estarão lá o Rui Bandeira e o Jaimão.

Lembro-me que o primeiro cantava o “que venha um alien divino e nos leve para lá, aqui já não dá!”; e o segundo, julgo ser um camarada que aposta numas rimas à Quim Barreiros, mas com menos classe na métrica. Não sei se chegam para o “maior festival de Verão português”, mas darão uns bons três minutos de Youtube. Com o enquadramento certo e apresentação do Tilly, até poderá ser equiparado ao Rock in Rio na ChegaTV.

Devo, contudo, manifestar-vos a minha surpresa com a forma de preenchimento de linhas no cartaz. Nunca tinha visto a referência a música ambiente num evento deste tipo. É quase como anunciar uma lista do Spotify ou avisar que o recinto terá urinóis. Parece aqueles relatórios de electrónica, que eu fazia, depois das madrugadas no Bairro Alto, em Times New Roman 16, só para conseguir ter mais do que uma folha atrás do título do trabalho. 

Rui Bandeira, cabeça de cartaz da Chega Fest Batalha.

Noto também a astúcia na pesquisa de trabalhadores. O Chega pede por voluntários, e depois diz-lhes que terão que passar por uma selecção. É o equivalente à experiência de trabalho voluntário na WebSummit, mas na companhia de pessoas que não terminaram a escolaridade obrigatória.

Em suma, o Chega gosta da voracidade dos mercados, do indivíduo que se sobrepõe ao todo e, sempre que possível, do desvio de dinheiro público para lucros de uma minoria privada, mas, no seu quintal, opta pela camaradagem do trabalho gratuito em prol do bem comum. Ahh…o sol ainda nascerá para todos eles. 

Quando comecei a escrever isto colocava, sem ironia, todas as esperanças musicais deste festival na banda de tributo aos Queen. Não há forma de correr mal quando se tocam os clássicos. “I want it all, I want it all, and I want it noooooow!”

Um pouco antes de enviar o texto, vou olhar para o cartaz de novo para ver se não me esqueci de nada, e vejo que a banda anunciou ter sido colocada no programa da festa por engano e, como tal, não marcará presença. Estes gajos não têm descanso. Devem andar a calmantes com o carrossel que a vida lhes proporciona.

Provam ainda assim que tenho duplamente razão: a banda deve de facto ser boa, e não há maneira de uma verdade chegana durar o tempo de cozedura de um texto.

Que venha a FEST. Vai ser porreira, pá!

Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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