DOSSIER P1 - ESTRANHOS CONTRATOS

A luta do Polígrafo “contra a desinformação” vale 860 mil euros oferecidos pelo Facebook em dois anos

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O fact-checking deixou de ser uma mera ferramenta da contínua e justa batalha em prol da verdade. Na verdade, transformou-se, sobretudo nos últimos dois anos, num negócio de milhões dominado por empresas como o Facebook, que impõe assim a sua narrativa sem qualquer regulação isenta, e “amaciando”, neste processo, a imprensa mainstream com fortes apoios financeiros. Quase um milhão de euros foi o que recebeu o Polígrafo só desde o ano 2020. Será este o modelo que uma democracia deve adoptar no combate à mentira?


O Polígrafo – o único órgão de comunicação social em Portugal dedicado em exclusivo ao fact-checking – recebeu mais de 860 mil euros do Facebook nos últimos dois anos para controlar sobretudo a desinformação relacionada com a pandemia. O montante em causa, que representa cerca de 36 mil euros em média por mês, terá sido recebido no âmbito do programa Third Party.

A informação sobre a forte dependência financeira do Polígrafo – que se assumiu, no seu nascimento em 2018, pretender ser um “Google da verdade” – obtém-se por cruzamento de informação existente no Portal da Transparência da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), cujo regulamento estipula, com algumas excepções, que os proprietários de empresas de media revelem “a relação das pessoas individuais ou coletivas que tenham, por qualquer meio, individualmente contribuído em, pelo menos, mais de 10 % para os rendimentos apurados (…) ou que sejam titulares de créditos susceptíveis de lhes atribuir uma influência relevante”.

Ora, a empresa detentora do Polígrafo – a Inevitável e Fundamental, Lda., que tem como sócio maioritário o seu director, o jornalista Fernando Esteves (60%) – registou no ano de 2020 uma dependência do Facebook da ordem dos 87%. Como os seus rendimentos naquele ano foram de 528.818,49 euros, significa que a rede social de Mark Zuckerberg entregou cerca de 460 mil euros ao Polígrafo durante o primeiro ano da pandemia, tendo sido este um tema recorrente nas análises quer na edição online quer no programa em parceria com a SIC.

Já no ano passado, o jornal digital dirigido por Fernando Esteves – ex-editor da revista Sábado – recebeu um pouco menos do Facebook (cerca de 404 mil euros), mas a sua dependência ainda aumentou mais; foi praticamente total: 96% dos rendimentos.

Em virtude deste “sustento” do Facebook, o Polígrafo disparou os seus lucros. Se em 2018 – ano da sua criação – acabou o exercício com resultados líquidos de apenas 4.710 euros, e em 2019 com um lucro de 17.742 euros, os últimos dois anos foram de maior saúde financeira e económica.

Fernando Esteves, fundador, director e sócio maioritário do Polígrafo, criado em 2018.

Em 2020, os lucros atingiram os 173 mil euros, tendo ficado próximos dos 60 mil euros no ano passado, permitindo assim baixar substancialmente o passivo – que era já de quase 200 mil euros no final de 2019 – e distribuir dividendos entre os sócios Fernando Esteves e N’Gunu Olívio Noronha Tiny, também proprietário da Forbes Portugal, através da Emerald Group. A folha salarial dos principais funcionários da empresa também subiram substancialmente.

O peso da mais importante rede social nas contas do Polígrafo – 91% das receitas nos últimos dois anos – colocam sobretudo em causa a exigida autonomia editorial de um órgão de comunicação social. Na prática, o jornal de Fernando Esteves – que exige que os seus colaboradores não possam ser militantes partidários por uma questão de transparência – trabalha para receber dinheiro do Facebook, não precisando sequer de leitores nem de audiências nem de publicidade diversificada.

Com efeito, de acordo com o Centro de Ajuda para Negócios da Meta – a holding de Zuckerberg – a monetização no âmbito do programa Third Party, e em articulação com o International Fact-Checking Network – que, além do Polígrafo, integra também o Público e o Observador –, existe uma forte relação entre o Facebook e os verificadores de factos, que acaba por ser também comercial.

SIC e Polígrafo têm uma parceria para a emissão de um programa apresentado por Bernardo Ferrão.

Inicialmente, o Facebook identifica posts com “potencial desinformação através de indicadores”, e admite que depois “apresentamos os conteúdos a verificadores de factos”, embora estes também possam ter a iniciativa. Posteriormente, a análise é feita pelos fact-checkers, seguindo normas mas supostamente de forma independente. Essa avaliação é, em seguida, conhecida pelo Facebook que pode, em seguida, aplicar medidas que passam pela exclusão da informação considerada falsa. Por este serviço, os fact-checkers recebem verbas do Facebook.

Embora em teoria a eliminação da desinformação surja como algo positivo e necessário, na verdade tem vindo a condicionar o debate de ideias e sobretudo algumas abordagens mesmo científicas que colidem com as posições da Organização Mundial da Saúde e dos Governos. Muitos verificadores de factos, com o Polígrafo, foram mesmo responsáveis pela polarização do debate ao longo da pandemia, seleccionando por vezes posts absurdos – e sem grande expressão nas redes sociais – para cunhar como “negacionista” qualquer posição que contestasse a estratégia política dominante.

Por exemplo, foram feitos pelo Polígrafo, desde o início da pandemia, cerca de sete dezenas de verificações de factos em que a palavra “negacionista” foi usada. Na maior parte dos casos, os redactores do Polígrafos usaram sistematicamente, não fontes documentais ou artigos científicos, mas simples opiniões de peritos, muitos dos quais com ligações a farmacêuticas. Ou mesmo a Direcção-Geral da Saúde, com quem o Polígrafo assinou uma parceria logo em Março de 2020.

Também na invasão da Ucrânia, o Polígrafo tem estado na linha da frente para fomento de polarizações, com enviesamentos de análises, que condicionam um debate livre, como se observou recentemente num fact-checking que acusava supostos “grupos negacionistas da pandemia viraram para a partilha de desinformação pró-Rússia”.

Em alguns casos, o próprio Polígrafo atribui culpas pela disseminação de fake news às redes sociais quando, na verdade, estas se iniciam através de notícias da imprensa não validadas, como sucedeu com um falso anúncio do massacre de 13 soldados ucranianos numa pequena ilha. Aliás, o Polígrafo assume que não faz verificação de factos, ou de qualidade e rigor, em peças produzidas por jornalistas.

A postura do Facebook e dos seus fact-checkers, como o Polígrafo, não tem sido bem-vista por muitos sectores, mesmo do meio científico. Por exemplo, a conceituada revista científica BMJ viu uma sua investigação sobre a falta de integridade dos ensaios das vacinas da Pfizer ser tachada de falsa.

Em carta aberta a Zuckerberg, em Novembro do ano passado, a revista viria a tecer duras críticas à rede social porque uma verificação de factos “imprecisa, incompetente e irresponsável” levou a que internautas ficassem impossibilitados de divulgar o artigo da BMJ.

O PÁGINA UM colocou ontem, ao início da tarde, um conjunto de perguntas e pedido de esclarecimentos ao director do Polígrafo, Fernando Esteves.

Questionou-o sobre se os apoios do Facebook, através do Third Party, eram verbas fixas (por mês) ou se dependiam do número ou qualidade das revisões feitas sobre conteúdos naquela rede social, bem como se existiram orientações expressas do Facebook, de forma directa ou indirecta em matérias específicas.

E pediu-lhe também uma opinião sobre se considerava que a relação financeira tão revelante não constituía uma ingerência na autonomia de um órgão de comunicação social, e se o Polígrafo teria capacidade de sobreviver nos moldes actuais sem este tipo de receitas.

Não houve resposta.

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