INFARMED & JUSTIÇA

Mosquito em frasco de vacina e correspondência da Agência Europeia dos Medicamentos são “segredo comercial”. Conheça a “tese” do juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa

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por Redacção PÁGINA UM // Junho 29, 2022


Categoria: Exame

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O caso sobe agora para o Tribunal Central Administrativo Sul. Terminou a primeira fase do processo de intimação contra o Infarmed para obrigar o regulador a fornecer informações detalhadas sobre as causas para a recolha de um lote de 765 mil frascos de vacinas da Moderna contra a covid-19 e a correspondência com a Agência Europeia dos Medicamentos desde 2020. A “tese” do juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa que julgou o caso é muito sui generis. Conheça-a e saiba que o PÁGINA UM não desiste de lutar a favor da transparência e da defesa dos interesses dos cidadãos à informação, através do seu FUNDO JURÍDICO.


Em sentença conhecida ontem, o juiz João Cristóvão, do Tribunal Administrativo de Lisboa, considera que, apesar dos direitos consagrados na Constituição da República e da Lei da Imprensa, o “pedido de informação apresentado” pelo PÁGINA UM ao Infarmed para aceder aos documentos relacionados com a recolha de um lote de vacinas da Moderna contra a covid-19 “foi configurado de tal forma ampla que o torna susceptível de aceder a um universo quantitativo e qualitativo de documentos impossível de prever, mas sobre os quais impende uma presunção legal de confidencialidade.”

Nesta medida, este juiz concede direitos de confidencialidade a documentos que protegem as farmacêuticas, e desobrigam o Infarmed como regulador a revelar dados potencialmente comprometedores, impedindo assim os consumidores de aceder a informação relevante para a sua saúde.

De igual forma, o juiz considerou que o Infarmed não tem de revelar as comunicações desde 2020 provenientes da Agência Europeia dos Medicamentos (EMA), conforme foi solicitado pelo PÁGINA UM, por estar, presumidamente, em causa “segredo comercial, industrial ou profissional ou um segredo relativo a um direito de propriedade literária, artística ou científica”.

Esta decisão do Tribunal Administrativo de Lisboa – ainda passível de recurso para o Tribunal Central Administrativo do Sul, que será apresentado pelo PÁGINA UM através do FUNDO JURÍDICO com o apoio dos seus leitores – decorre de um pedido recusado em Abril pelo Infarmed, presidido actualmente por Rui Santos Ivo, que já esteve ligado ao Ministério da Saúde e foi ainda director executivo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA) entre 2008 e 2011.

Apesar da comunicação social no estrangeiro ter revelado que a recolha de 765 mil frascos de um lote de vacinas da Moderna tenha sido devido à detecção de vestígios de mosquito, o Infarmed recusou-se a confirmar essa informação, tendo apenas publicado no seu site que tinha sido encontrado “um corpo estranho“.

O Infarmed alega que o regime jurídico dos medicamentos de uso humano (Decreto-Lei n.º 176/2006) “prevê um dever de confidencialidade que se traduz num regime especial em matéria de acesso a documentos administrativos”, incluindo dados “transmitidos pela Agência [EMA] ou pela autoridade competente de outro Estado Membro.”

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O regulador português aponta sobretudo para o disposto no n.º 2 do artigo 188º desse regime que diz serem “confidenciais os elementos apresentados ao Infarmed ou a estes transmitidos pela Agência [EMA] ou pela autoridade competente de outro Estado membro, sem prejuízo do disposto no presente decreto-lei.”

Ora, entre aquilo que está no “disposto” neste diploma legal está um aspecto essencial, ignorado tanto pelo Infarmed como sobretudo pelo juiz João Cristóvão: a protecção da saúde pública. Na verdade, o diploma – conhecido por Regime Jurídico dos Medicamentos de Uso Humano – destina-se, em primeira análise, e presume-se, a defender os consumidores e não necessariamente as farmacêuticas.

Com efeito, no artigo 4º desse diploma salienta-se que “as disposições do presente decreto-lei [e, nessa medida, a questão da confidencialidade] devem ser interpretadas e aplicadas de acordo com o princípio do primado da protecção da saúde pública.”

Esse mesmo primado leva à necessidade do Infarmed publicitar as informações “na página electrónica”, conforme previsto no artigo 198º, casos como os de detecção de anomalias em medicamentos, mas não lhe deveria conceder o direito de sonegar elementos relevantes como seja a identificação do “corpo estranho” apenas com o objectivo de proteger uma farmacêutica.

Na verdade, no limite, o Infarmed pode esconder, se vingar a tese estranhamente defendida pelo juiz João Cristóvão, qualquer escândalo com medicamentos, não libertando documentos, alegando que, por absurdo, está em causa um “segredo comercial” ou então “um direito de propriedade literária, artística ou científica”.

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O juiz também defende que o estatuto de jornalista e a sua função primordial de informar e aceder à informação, mesmo se investido de direitos consagrados na Constituição e no Estatuto do Jornalista, não é suficiente para se “demonstrar fundamentadamente ser titular de um interesse directo, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante após ponderação, no quadro do princípio da proporcionalidade, de todos os direitos fundamentais em presença e do princípio da administração aberta, que justifique o acesso à informação.”

Em suma, se a tese deste juiz de primeira instância “vingar” no Tribunal Central Administrativo do Sul , significa que o papel de intervenção da imprensa fica profundamente limitado, algo pouco consentâneo num país que se apresta para comemorar os seus 50 anos em democracia.


Os custos e taxas dos processos desencadeados pelo PÁGINA UM são exclusivamente suportados pelo FUNDO JURÍDICO financiado pelos seus leitores.

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