São, pelo menos, três: a praia da Aguda, em Arcozelo, no concelho de Gaia, onde descobri o cheiro a maresia na infância; a praia da Aguda, em Sintra, de onde um amigo me mandou a cor das ondas; e a freguesia da Aguda, em Figueiró dos Vinhos, que descobri porque perguntei ao maravilhoso mundo da Internet.
Sempre me fascinou encontrar os meus sítios noutros sítios. Entender o porquê de se multiplicarem por este jardim Atlântico, se foi falta de imaginação ou se existe uma razão (geográfica, que seja) para tantas Canelas em Portugal (acho que são bem mais do que três Agudas, e fazem-me sempre pensar em pontapés). Talvez seja reflexo de colonizações, invasões ou contágio.
É desta maneira que sempre julgo ter a prova cabal que tudo aquilo que alguém pensa hoje, neste preciso momento, algures numa Aguda, alguém certamente já terá pensado antes, ou até no mesmo momento; talvez num espanto cósmico de interferência mística! Ou então, podemos convir que nada disto é novo, que há dilemas eternos, barreiras evolutivas do pensamento, eventualmente cristalizadas no seu entorno, e que sempre, sempre, passam por uma ascensão civilizacional e culminam com a sua queda.
Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
O dilema eterno do valor da vida humana, quando começa, quando termina, quem pode dispor dela, continua a inflamar as gentes deste mundo. Seria até de esperar que numa década tão furiosamente dominada por Cientismo, e em sociedades que clamaram por mandatos sanitários sem pruridos éticos, não houvesse agora uma bandeira de alarme hasteada em continente americano.
O direito de acesso ao aborto nos Estados Unidos ficou consagrado há umas boas décadas, mas manco: usava do princípio da constitucionalidade – não descrita na Constituição – da privacidade.
Agora, está aparentemente perdido e, para alguns, é motivo de gáudio; para outros é motivo para pensar que, se existir uma Aguda repetida, porventura alguém pensará igual.
Pesa ainda todo um novelo de moralidade e instituições religiosas – conhecidos baluartes de emancipação feminina (consultar no dicionário: sarcasmo) – a alardearem furiosamente a propaganda da sua mensagem.
A verdade simples é que talvez o direito nunca tenha existido, não pelas razões que pelo menos muitas pessoas defenderiam. Talvez esse direito só tenha sido garantido enquanto o mercado – esse outro baluarte – queria acomodar as mulheres. Agora, com o monstro da recessão a bater à porta as sociedades, apressam-se em sacar os grilhões. Profilaxia.
A verdade simples é que a preocupação do planeamento familiar cai sempre nos ombros da mulher: as consequências de ter ou não ter uma gravidez, um parto e um pós-parto; as consequências de uma pílula; as consequências de um DIU; os riscos de outros métodos mais naturais. Somos a baliza e temos de arranjar guarda-redes.
A verdade aguda é que assim que se começou a desenvolver uma pílula masculina os primeiros estudos foram rapidamente interrompidos porque os participantes se queixaram de efeitos adversos. Alguns eram acne, diminuição da libido e variações de humor. Foi considerado que estes incómodos não compensavam em comparação com o estudo da eficácia desta pílula.
Quem é mulher lê isto e não deixa de pensar, seja lá qual for a sua posição sobre o resto – e lembrando que quase todas nós sabemos que a posição é muito perigosa de ser escrita em pedra, que, pois claro, a mulher resolve. A pílula feminina “só” tem efeitos adversos como: ansiedade, depressão, flutuação de peso, cefaleia, náusea, redução da libido e até coágulos sanguíneos, entre outros.
A verdade triste é que, neste momento, em alguns estados americanos, até as apps de monitorização de ciclos menstruais podem ser intimadas por um tribunal para fornecer dados privados sobre os ciclos das utilizadoras, para verificar se poderá ter ocorrido um aborto clandestino ou não, em caso de denúncia. Assim, à semelhança do gado.
Importante é que se salve aquela gestação, mesmo que seja para viver na miséria, mesmo que seja fruto de violação, mesmo que a mãe seja uma criança de 11 anos – como ocorreu também agora no Brasil, e empataram a decisão até a gravidez ter sete meses. Seria, por certo, outra Aguda mais a sul.
A verdade muito aguda é que isto afecta e destrói sempre as vidas mais pobres, mais desprotegidas, mais infelizes. E não falo dos bebés. Falo das mães.
A verdade obtusa é que andam a debater crenças morais quando a ética deveria falar mais alto, e lembrar que o direito à autodeterminação sobre o próprio corpo e actos médicos realizados é absoluto.
Resta saber quantas Agudas existem no Mundo, e se estamos mesmo a ver a perda de direitos de controlo reprodutivo, em nome de fervores morais e agendas políticas que atribuem poderes de uma sociedade ditar o que podemos individualmente fazer com o nosso corpo. Nada que não esteja a ser ensaiado e aplaudido há algum tempo.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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